Manifesto em favor daqueles que calam para que eu possa falar.

Cada segundo preenchido por minha voz em um ambiente tomado de silentes presenças é um segundo a menos para que estes se façam ouvir. A idade do mundo se vai enquanto falo. Logo viver não mais será.

Assim, reivindico atenção ao espaço onde minha voz está, buscando retornar protagonismo ao silêncio dos pensantes que se fazem presentes em mudez, sem seus sons em língua portuguesa a sublinhar suas presenças.

Presenciar quem está calado me faz cogitar os barulhos que poderiam fazer. Me fazer presente graças a esse silêncio é, portanto, sobrepuja-los; estar, por mérito, gentileza ou coerção, numa espécie de topo em relação a estes: acima, à vista, ainda que sozinho.

Por isso manifesto em favor daqueles que calam para que eu possa falar. Seus silêncios aqui são valorizados. Mas ratifico-os de sua essencialidade: Quando calamos, nossa mudez não é tanto um pretexto para a escuta quanto a construção de um espaço para uma fala que não a nossa. Funcionamos bem como espaço cedido a outrem. Já nossa validade enquanto audiência é sem dúvida questionável.

Contudo, lembro de Claude Leví-Strauss, que no livro Minhas palavras agradece aos alunos por suas reações “mudas, mas perceptíveis”, que lhe permitiram desenvolver o pensamento sem grandes atropelos.18 E, visto isso, busco mudar minha opinião e me escrever neste final de manifesto como esse Claude Leví-Strauss que, a um só tempo, crê nas reações que julga ver em sua audiência e é grato por sua mudez.

Tendo demonstrado minha fé e gratidão, me sinto confortável em avisar por fim que minha voz terá fim. Demonstro dizendo que, ao meu ponto final aqui, outra pessoa usufruirá do espaço que nós que calamos criamos para que ela possa falar. E nessa frase já se percebe que não mais manifesto em favor daqueles que calam para que eu possa falar. Já não sou mais tanto um eu ao conjugar a primeira pessoa do plural.

Ainda assim, os manifestos, geralmente contra algo e representativos de um nós, uma coletividade a falar em uníssono, encontram aqui novo problema: o sujeito que fala, desejoso em ser junto aos que calam para que este se faça voz, tendo elegido manifestar essa vontade, já não pode se apresentar contra algo – ser contra aqui seria ser contra sua própria necessidade de falar, ser contra sua própria voz, o que é evidente paradoxo insustentável – e nem falar enquanto a representação de um nós, tendo em vista que a amalgamação dele com a coletividade que seu manifesto reivindica representar – os que calam para que ele se faça voz – é impossível, ontologicamente: são as diferenciações entre falante e mudos que os constituem enquanto sujeitos. Por isso, me permito ser e, novamente, ainda que pela última vez, manifesto em favor daqueles que calam para que eu possa falar.