Das 22h do dia 20 às 10h do dia 23 de abril de 2014, todas as pistas da Avenida Brasil foram fechadas na altura do bairro de Ramos em virtude das obras para a construção da ponte estaiada do BRT Transcarioca. Minutos após o início desta interdição, moradoras e moradores da região ocuparam tais vias vazias, sem carros, utilizando-as como uma área de lazer. Estas presenças que então jogavam futebol, andavam com skates, patins, bicicletas, passeavam, corriam e aproveitavam de todo modo aquela grande extensão disponível poderiam lembrar o parque público High Line em Nova Iorque, construído sobre uma linha de trem desativada, ou mesmo o Elevado Costa e Silva em São Paulo, conhecido como Minhocão, que, atualmente, em horários específicos, é interditado e torna-se uma área de uso recreativo. Mas uma diferença crucial se coloca: diferente dos projetos citados, frutos de tomadas de decisões públicas, projetos urbanísticos vindos de um consenso – suposto, muitas vezes – da sociedade civil, a ocupação na Avenida Brasil dos dias 20 a 23 de abril de 2014 partiu da própria deliberação multitudinária – sem pautas definidas, sem estar organizada por um interesse coletivo expresso claramente – das moradoras e moradores das regiões próximas às pistas interditadas. Julgado então espaço ocioso, naqueles dias de lazer a Avenida Brasil se tornou o que muitas pessoas desejaram ao nosso antigo Elevado da Perimetral à época de sua derrubada: um espaço, com outros usos, estruturalmente conservado.

Em 14 de janeiro de 1969, Helio Oiticica inicia texto seminal às suas práticas artísticas a partir de então com a frase “Não ocupar um lugar específico, no espaço ou no tempo, assim como viver o prazer ou não saber a hora da preguiça, é e pode ser a atividade a que se entregue um criador. ”. Aí então é cunhado o conceito crelazer, preocupação evidente de Helio com a colocação do lazer em potencial, em detrimento de sua correlação usual ao trabalho, como algo a ser realizado no tempo ocioso do citadino. Coloca Lisette Lagnado no texto Crelazer, ontem e hoje, publicado no caderno SESC_VIDEOBRASIL vol. 3, que:

“Nos tempos vividos em Nova York, junto com Romero, [Helio Oicitica] tentou uma experiência não muito bem-sucedida: entrar no metrô, num determinado trajeto (no trem 4, direção uptown para o Bronx), e fazer os trabalhadores em trânsito usar Parangolés-capas (1972). Percebeu que a resistência participativa das pessoas poderia estar relacionada com sua grade horária de trabalho. Para haver participação, o tempo precisaria ser “aberto”, o público teria de anular compromissos e obrigações. ”

Sendo “um programa in progress (…) uma política contínua e que, portanto, absorve os humores de cada época” (ibidem), não é difícil identificar o crelazer em cada proposição de Helio, sua postura anárquica em vida, em arte, e em cada momento de prazer desalienado das estruturas de trabalho que podemos viver até hoje.

Solidário ao lazer que ocorreu na Avenida Brasil em abril de 2014 e identificando nisto o crelazer que Oiticica nos aponta em 69, durante minha residência junto ao projeto ComPosições Políticas, outras histórias do Rio de Janeiro proponho fechar a Avenida Brasil durante 3 dias. Para isso, usarei de todos os métodos possíveis e necessários para realizar este trabalho: entrar em contato, via e-mail, telefone, presencialmente, com instituições, órgãos e indivíduos que poderão chancelar tal ação; realizar abaixo-assinados com a população local pró este fechamento de 3 dias; hastear grandes cartazes e bandeiras nas passarelas da avenida para pleitear a interdição aos que ocupam os veículos que a cruzam diariamente; estimular o uso das redes sociais para reivindicação; dentre outras formas que serão descobertas e desenvolvidas em colaboração com moradoras e moradores da Maré, artistas residentes, dentre as outras pessoas que estiverem próximas no decorrer deste mês de março.

Helio ainda chega a indagar em 14 de janeiro de 69 se “crelazer é o criar do lazer ou crer no lazer”. A necessidade de acreditar no potencial criativo do lazer se interpõe à criação livre nele. Crelazer não é totalmente crível. Ainda busco acreditar no lazer e proponho o que me parece possível frente ao magnânimo do lazer destes que ocuparam a Avenida Brasil. Já não posso tanto ser propositor como este Helio em 69 que tanto nos contribui com seus escritos e práticas. Mais me concebo como alguém que deseja abrir espaços para a multidão que nos mostrará novamente como crelazer, como sempre o fez e faz. Pois foi ao ver as imagens desta ocupação da Avenida Brasil e lembrar deste conceito, crelazer, que me dei conta deste acontecimento já como potência às artes visuais (não uma potência esteticista: “adeus, ó esteticismo “, nas palavras de Helio) e que o único gesto artístico que poderia fazer visto isso era, utopicamente, buscar restaurar as condições que possibilitaram este levante.

Sem mais e buscando crer, proponho aqui.

Proposta, não selecionada, à convocatória para a residência ComPosições Políticas, que ocorrerá no bairro da Maré, no Rio de Janeiro.