Perdoar é importante. Fundamental para que eu consiga seguir botando meus pés nesse chão, sem almejar outro. Perdoar o mundo para, então, amá-lo.
Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo – o existir. Iberê Camargo escreveu isso num texto seu chamado Gaveta dos guardados. Sempre me tocou, do dia em que li esta frase até então, que ela tenha sido feita por um homem que foi notório por trabalhar com óleo e tela, não com letras. Me vi na frase à época, pois entendi que a escrita era o que permanecia a me comprovar minha existência sensível. Quando desanimei com o modelo de exposições nas artes visuais, ou quando duvidei do que fazia, quando estive preguiçoso deitado a pensar em que merda significa buscar viver norteado pela sensibilidade – algo não somente producente ao capitalismo, mas contra ele – que encontrei no produzido em artes visuais, a escrita era o lugar em que permanecia; não precisava de mais do que o alfabeto para sinalizar a mim mesmo e a quem desejasse me ler que eu existia ainda, que resistia aos critérios que discriminam dentro e fora e seguia a afirmar que estava em arte.
Dizer estar em arte, em parte, é aceitar o inegável: que estudei arte. Passei alguns seis anos entre instituições, entendendo este front do viver ambiguamente, que aprendi próximo aos que produzem na chamada arte contemporânea. Arte me é inescapável. Possuo algum capital cultural, o que faria uma tentativa de fugir do artístico para uma pretensa vida pura uma bobagem (vide certas apropriações da dicotomia arte-vida brasileira dos anos 50, 60). Contudo, estar em arte também diz respeito à vida que busca mais correspondências ao sensível que encontramos historicamente na égide arte que na pragmática da organização social corriqueira, macro ou micro política.
Por isso, comecei a crer que poderia escapar ao circuito tradicional artístico que me formou. Me alimentei da crença que me preparava durante este período de formação em artes não para me tornar um artista profissional, mas para ser um ser humano problema, um ponto crítico à sociabilidade com o meu próprio corpo humano; móvel, algo autônomo, ora capturado pelas zonas de interesse social, ora me rebelando e fugindo disso, impondo problemas tais que era expulso de certo corpo social como um corpo estranho que acabara de entrar no organismo. Como na adolescência escutei prioritariamente músicas produzidas independentes às gravadoras e circuitos mainstream e li alguns textos bem pueris sobre anarquismos individualistas – mas que depois me instigaram, e instigam ainda, uma certa fome por conhecimento do libertário e da autonomia popular -, quis, desde o princípio de meus estudos, descobrir formas de circular artes visuais de forma independente ao institucional e ao fomento público, corporativo e privado que determina nosso acesso e articulação enquanto cena. Mas nunca me contentei com o que era chamado de cena independente nas artes visuais. Seja por que reproduziam modos de existir tais como processos seletivos, relações cordiais com o institucional, dependências financeiras para com o privado e público, crença sólida em critérios que, ainda de modo não percebido, correspondem ao que segrega por classe, gênero, lugar, raça, o que determina a inexistência de produtores outros na cena etc., seja por, noutro polo, se negarem ao posicionamento político e ao critério, gerando desbunde em plataformas abertas que pouco criaram lastro coletivo aos artistas que participaram dela, e por se comprometerem menos com a criação e o fortalecimento de pequenos e populares grupos artísticos articulados que com seus próprios fortalecimentos enquanto referenciais únicos, acabei necessitado por gerar uma resposta a mim – na falta de identificação com as cenas independentes na arte – sobre como existir em arte alheio a tudo isso, institucional ou independente. Daí essa perspectiva sobre mim mesmo como meu lugar de atuação, sobre estar e me dedicar à ação em meu corpo e o que me circunda e me faz em curto raio de distância, sem o auxílio de amplificadores.
Isso implicou no que chamei de endereçamento estrito. Desejar realizar dessa maneira implicava que eu abandonasse a pretensão ao público – endereçamento difuso – e me dedicasse a construir a visibilidade como parte do meu trabalho visual, o que não desejei realizar para um sem-número de pessoas, que acessariam minha realização sem possibilidade de réplica, de invasão aos meus próprios olhos, de articulação comigo mesmo, em suma. Daí, quis endereçar estritamente, saber pra quem faço, desejante assim de relações mais diretas, colaborações não convocadas por mim, diluições de minha venenosa vontade de autoria e de mais-valia simbólica e artística, diferente da constituição de público – geral ou específico, como num site-specific -, em que não há indivíduos, nem grupos sociais profundamente e a longo prazo conhecidos e próximos, mas só há, no máximo e no melhor dos casos, preocupação em tornar acessível para muitos (já não mais uma só população, mas ainda muitos para sabermos quem são pelo nome de cada um) o que foi feito por poucos.
A princípio, percebi minha escrita de artista publicizada como uma parceira à vontade do endereçar estritamente. Já que não a reconhecia como minha produção artística, ela poderia ser um modo de, sem dar a ver o que então faria para pessoas específicas, divulgar ao público o produzir desta maneira endereçada, e não de outra ansiosa por gente desconhecida. E via que escrever sobre o que se faz era acessar um outro lugar, mais amplo, onde tanto os trabalhos realizados quanto as dúvidas que surgiram em seu processo de desenvolvimento, as desistências, o ócio em seus intervalos de concepção e demais situações periferizadas pelo que o artista determina como obra final se tornavam um só. Assim, na escrita, o artista coloca em xeque sua própria identidade, critério e produção. Mas, para escrever – e, nisso, falar mais do que ambicionavam dizer -, os que trabalham plasticamente algumas matérias no mundo, no uso das letras, em prosa, via de regra, não utilizaram da ficção. É então uma escrita em primeira pessoa e biográfica que reconhecemos como a produção textual de tantos artistas, pois, livres de tarefas historiográficas ou de busca por qualidade literária, ainda assim estavam comprometidos a escrutinar, no mínimo que fosse, a si mesmos no que fizeram ou planejaram fazer.
Ao mesmo tempo, relembro Iberê, pois pela escrita provamos a nós mesmos nossa existência. E foi por relembrar de Iberê também há algum tempo que tive medo de permanecer escrevendo quando me determinei realizar artisticamente em endereçamento estrito. Já que pública, através deste processofólio, minha escrita, ainda assim, talvez fosse obra, talvez fosse criação artística, quem sabe estivesse prenhe de intencionalidade formal, de minhas investigações no campo das outras materialidades que encontrei pelo mundo, ou ainda mais: escrever seria a forma de comprovar a mim que ainda era artista; por não acreditar no meu endereçar estrito, por ter medo de não ser visto pelo público, por não querer desenvolver minha identidade como artista somente com a meia dúzia de pessoas que francamente conseguiria interlocução neste programa anti-público, escreveria, tal qual o Iberê Camargo frasista, para tocar a realidade do meu existir. E, dito isso, foi por crer que mentia para mim mesmo ao dizer que minha escrita era completamente oposta a vontade de me tornar público ou tornar público meu trabalho que ambicionei interromper completamente todo investimento público que poderia realizar para existir, abandonando, por fim, este meu processofólio.
Só que creio ter negligenciado a gravidade dessa cisão. E, neste momento, sinto desejo. Dá vontade não só de escrever, mas também de participar dos editais, de ambicionar vender coisas, de ser bajulado, admirado à distância por quem eu não conheça, de ter como facilmente agradar minha família ao dizer que tem pessoas por aí valorizando com dinheiro e reconhecimento as coisas que faço e que quase nunca mostrei para eles, parentes. Deu vontade de ter forças suficientes para escrever num SMS Perdoo, mas nao quero ter mais nada com vc. Apesar de o desejar profundamente, preciso estar e produzir o q faço de mais sensível longe de vc, como num término dum relacionamento. o q é isso q nao terminar um relacionamento, afinal. O fim é dramático e eu insistia em o tratar como algo corriqueiro. N é assim. Por isso, retorno aq, para evidenciar minha vontade minha dor, meu perdão e te dizer, aquém disso tudo, q n desejo reatar. Talvez a gnt se encontre em segredo – se é q é possível -, n mais q isso, já q reafirmo meu compromisso com todos e todas q não são vc; muitos, eu diria.e, Por serem tantos, não te comportam; Vc n faz parte desta nem de nenhuma poligamia. Um beijo com desejo e parcimônia em vc, público. Daquele q ja foi seu, jandir jr. Mas isso seria mentira. Não é tão fácil assim. Não é justo que eu encene que esteja tudo bem, sisudo, frio como a liga na escultura de aço inox ou mínimo como a instrução em certo trabalho conceitual.
Talvez o que caiba é perdoar. Buscar, um a um, os que me machucaram e machucaram aos meus e os perdoar. Perdoar o racismo, a periferização, perdoar minha falta de grana, perdoar se por acaso senti fome e cansaço alguma vez para conseguir estudar percorrendo longas distâncias com pouco tempo, perdoar o tempo correndo mais rápido para mim, perdoar as desigualdades sociais, o classismo, meu ódio de classe, perdoar a misoginia que me favoreceu por vezes – se me é possível -, perdoar o circuito artístico, o mercado, os professores que foram negligentes ou de posição inocente para com a estratificação socioeconômica de seu alunado, perdoar o capitalismo, perdoar a comoditização dessas coisas maravilhosas, perdoar o mundo todo, talvez. Perdoar até mesmo a porra dos escravizadores contemporâneos, que não tem nada a ver com o texto até então, mas sinto que é só com um perdão absurdo e gigantesco como esse que poderia, então, amar. E só dá pra seguir com isso, com essa vida desapegada e resistente que gostaria de levar com o que mais gosto de fazer, no trabalhar endereçando em estrito em que gostaria de me satisfazer, com os pés no presente e nada mais comigo, com pobreza financeira e sobriedade na minha circulação social, se for amando. Só dá pra produzir em dádiva num mundo permutador amando. Só amar muito seria suficiente para olhar para isso tudo sem desejar possuir, dominar ou destruir, se mantendo alheio, acreditando que minha própria existência também se situa além do sistema econômico e social que subjaz meu corpo. Mas eu ainda não amo assim. Não, eu não consigo perdoar. Mas estou tentando, porque não vejo outra forma de resolver isso, apesar de parecer difícil, quase impossível.
De pensar em perdoar, lembrei das pessoas para quem devo pedir perdão e não o fiz. Não diria aqui quem são, pois creio que pedidos de perdão devem ir para seus destinatários e para mais ninguém; endereçamento estrito, não difuso, afinal. Mas me recordo de uma pessoa que já não sei se vive ou morre, ou se permanece com a mesma face que adotava quando a conheci. Cogitaria, por isso, pedir perdão para ela aqui, já que não sei se existe ainda, fisicamente ou como a vi. E percebo: talvez tornemos certas coisas públicas para que sejam como cartas que são enviadas para entidades sem carne, habitantes do passado, fantasmas não humanos, pessoas mortas, recém desconhecidas.
Escrever publicamente talvez seja provar nosso existir para esse tipo de existência a qual não podemos endereçar estritamente, já que nunca conheceremos seu endereço. Para viver próximo ao que se faz em distância; talvez escrever publicamente seja ser um vizinho absurdo, até então impossível. Imagino a ânsia por escrever para ser não só a si mesmo, mas para ser às coisas que parecem não existir até as vermos emergirem em nossas próprias justaposições com o alfabeto. Ou, quem sabe, escrever publicamente sirva para eu tocar a existência do meu endereçar estrito, tão imaterial quanto os que já não sabemos se existem ou não. Talvez eu escreva à vista de todos para me avizinhar dos que não conhecerei ou do que ainda duvido que exista em mim. E talvez aí você possa me ver em momento de escrita, público. Talvez, pois tendo a acreditar que o endereçamento estrito é minha única chance; sem facebook para me criar em timelines alheias, sem querer curadores para me proteger entre quatro paredes brancas ou em parágrafos, sem o ímpeto pessoal de atingir quem não lembrarei ou saberei pelo primeiro nome.
Confesso, ainda assim, que concebi endereçar estrito oscilando entre a vontade que aqui anunciei dum autoexílio e a incapacidade de estar no campo artístico, por falta de profissionalismo meu, ou algo assim. Creio, com isso, que há um lado medíocre no que disse até então e que talvez eu tenha enfeitado um pouco a coisa toda que escrevi para não lidar com este lado. E é possível que eu tenha falado de perdão por estar sob efeito de uma relação indireta deste com o desejo; talvez pedir perdão seja ambicionar ser desejado, e, perdoar, desejar. Quem sabe? Acho que sou eu que vejo a coisa assim. Não há como comprovar isso para além da minha acepção pessoal. Quem quiser crer no que creio aqui, terá que ter fé no que digo. Apenas isso.
O Cassio me mostrou uma vez David Bohm falando, por sua vez, estou sugerindo que nos enfoquemos no aprendizado. Não sabemos ainda o que fazer com isso. Temos de nos interessar pelo aprendizado por si só, pois, se for por qualquer outro motivo, isso acabará por entrar no condicionamento. Dizia ele para apenas observarmos nosso pensamento, viciado como é; não há ainda escapatória para pensarmos de maneira nova. Temos que aprender em contemplação.
Nisso, pretendo ainda observar o resselvagizar do meu pensamento, para desejar de modo tão instantâneo que ele, o desejo, só exista a mim no momento em que, sem nunca lhe ter desejado antes, o conseguir realizar quase que por acidente. E, no mais, eu prefiro ir dizendo que continuo vivo por aqui, em arte, escrevendo com o mesmo alfabeto em que On Kawara disse I am still alive, neste nosso alfabeto em que ele, eu e você, público, conjugamo-nos inescapavelmente na primeira pessoa do plural.