O que é mediação?
Atuei como educador estagiário no Museu de Arte do Rio desde sua inauguração, em 2013, até meados de 2014, onde fui interpelado por três vezes a responder, em exercícios semanais, à pergunta ‘O que é mediação? ’.
Em minha primeira resposta, optei por escrever sobre dois dias do meu trabalho, em que falei do mediador enquanto uma espécie de sedimentador de terrenos e sujeito ao terreno acidentado ele mesmo, e sobre a vez em que, criança, perguntei algo à minha avó sobre meu falecido avô e ela chorou, sem conseguir me responder. Isto eu correlacionei à questão que nomeia esta carta, ainda sem saber muito bem o porquê as achava próximas, o choro e esta pergunta.
Na segunda resposta que dei, ao que me lembro – já que a escrevi exclusivamente em uma das reuniões semanais -, falei sobre quando uma visitante chorou em atividade educativa comigo ao relembrar de seu falecido pai. O que recordo do que disse, e que relacionei prontamente ao choro de minha avó, foi que nada consegui fazer a respeito daquilo, que paralisei frente ao choro dela e tive a impressão de que não sabia entender suas memórias, quando embebidas em lágrimas, como contribuição para a atividade educativa e para o processo de mediação que ali emergia. E nisto, aludi ao que é difícil reconhecer como contribuição do público para além do que é usual a nós quando instituição.
Na, até então, última resposta que dei à questão, pensei a mediação como desconforto, em que o desconforto não era apresentado como simples subtração de conforto, mas como processo criação através da rarefação dos afagos e delícias corriqueiros que, por vezes, se faz nas atividades realizadas com mediadores e educadores em espaços como o do Museu de Arte do Rio. Terminava, contudo, me indagando se me comprometia a criar quando gerava desconforto com minha atividade no museu ou se somente suprimia o conforto, sem empreender outros possíveis.
Em um crescente dessas respostas em predicar a atividade educativa e de mediação em museus em situações conflitivas – como na tristeza saudosa ou no desconfortar que vivenciei -, responderia hoje, nesta minha carta de intenção, que a mediação cria não só pelo consenso, mas – e, quem sabe, com mais poder – pelo dissenso. Desde as pressões que grupos sociais realizam para a inserção ou exclusão de sujeitos dentro dos espaços expositivos e funções museais até os incômodos que exposições podem causar a um visitante médio, há profícua arena onde se desenvolvem processos de mediação dos museus, em consonância com sua vocação dialógica e quando alinhados com preocupações democráticas precursoras.
Vislumbro esse tipo de preocupação democrática no Museu de Arte do Rio. Ainda que em evidente vínculo com políticas municipais criticadas por grupos sociais – e talvez fomentado por isso -, o museu faz ver seu compromisso com o processo de mediação que gera com sua existência ao investir em atividades inclusivas – como em sua programação continuada com a comunidade surda e no seu sediar a Batalha de rap do Conhecimento -, em processos de revisão histórica e crítica – como ao assumir a contínua exibição, aquisição e documentação de artistas de fora do historicizado e socioeconomicamente fortalecido eixo sudeste – e em seu compromisso comunitário – ao atuar junto às instituições, organizações e às pessoas vizinhas no acesso e representatividade dentro de sua programação -.
Ex-estagiário no Museu de Arte do Rio, agora um graduado em artes visuais suburbano e negro, implicado nessa mediação entre a instituição e amplos setores e indivíduos de nossa sociedade, desejo colaborar algo mais nela, no que justifico minha candidatura ao cargo de Educador II.
Carta de motivação entregue em minha entrevista para a vaga ao cargo de Educador II no Museu de Arte do Rio, ao final de julho de 2016. Em agosto, fui selecionado e contratado pela instituição.
Me recordo do ano de 2013, em que estive dentro de um grande prédio branco observando manifestantes em alvoroço gritarem contra as paredes que me abrigavam. Digo abrigo, mas mais creio prisão nelas. As paredes não amalgamavam comigo confortavelmente. Ao contrário, alocavam sobre minha pele, causando dores aos meus ossos, porque pesavam sempre. Não permaneciam à 90 graus em relação ao solo: sempre tombavam. E sempre tombavam para o meu lado. Mas só o suficiente para encostar em mim, apoiando um pouco seu peso e me fazendo gotejar de suor. Não me esmagaram.
Ouvi dizer, há tempos, que foi encontrado um esqueleto emparedado naquelas mesmas paredes que me pesavam; dum corpo torturado, remanescente do período ditatorial, onde esse prédio, que não era o da Escola do Olhar do Museu de Arte do Rio, foi um dos locais de uso do exercício desse poder de exceção. Se houvesse me detido nesta lembrança tempos atrás, teria medo de que meu próprio esqueleto adentrasse a densidade daquele sólido branco em 2013, já que doía, já que me era tão próximo e exercia pressão nos ossos. Mas a brancura da Escola do Olhar não engoliu a brancura do que há de cálcio em mim. A cor da minha pele repousa nela.
Sou negro. Não há felicidade em voltar a trabalhar no lugar em que, quando Dilma esteve presente, me obrigou a estar disponível, porém invisível enquanto não me quisessem dentro das galerias com o seleto público inaugural, o que me deu a ver, neste ínterim misto de ócio e cárcere, dentre as frestas das janelas, as bocas dentre os tapumes do canteiro de obras Praça Mauá e os carros em fluxo. Bocas que gritavam não sei exatamente o quê, e que, por isso, se somavam ao rumor daquelas vítimas das violações dos direitos humanos perpetuados pelo estado em seu novo rosto olímpico. As ouvir foi ouvir que o que me pagava as contas era erguido no vácuo gerado por um bem dado foda-se ao sangue e às lágrimas das pessoas faveladas. As relembrar hoje, no momento em que retorno agora como trabalhador CLT ao Museu de Arte do Rio, seria como me sentir o escravizado da casa grande, caso eu não fosse coagido a estar ali pelo cenário precário de empregabilidade aos graduados em artes no Rio, onde este museu foi o único lugar que me ofereceu condições de subsistência como mediador.
Mediador: não um educador, não um arte-educador, não um guia, não um artista. Mediar é situar-se entre a instituição e seu amplo público. E, se creio haver problemas raciais-etc. no cenário e episteme artística, penso: talvez não queira ocupar outro lugar que não esse. Não sou um artista-etc. quando num setor educativo de museu. Ao contrário, sou seu público. Sou a escuta, mas posso ser também a boca dessas bocas, a pele dessas peles. Não sou artista nem autor quando aqui; ser autor é estar em desvantagem numérica.
Minha esperança é a de não ser qualquer público quando ali, contudo. Não estou junto ao estrato daqueles que visitam o museu com suas camisetas polo e suas famílias heteromedianas. Como disse na carta, me filio nominalmente às alcunhas suburbano e negro, o que fiz para o delineio de minha preocupação, no contexto da discussão de um museu como exibidor do que é relevante a tantos olhos, sobre a revisão constante da aparente estabilidade do que está exposto. Estremecer o lugar das chancelas dos privilégios que compõem o acervo dum lugar destes pode ser o papel de quem trabalha na sua amálgama com a multidão que parece pacífica dentro e fora das galerias, quando, em cada uma das pessoas que a compõem, fervilha a ânsia por uma revisão permanente das bases democráticas que determinam o que se dá à vista. Justifico-me, assim, um lugar neste museu para minha pele sob suas paredes.
Tenho minha crença no Museu de Arte do Rio corrompível na medida em que sua vontade democrática precursora se mostra corrompida a nós. Quando os avanços no enegrecimento-etc. da instituição se apresentam tímidos, falsos, ou mesmo quando convencem, faz-se irredutível o fato de que sua existência se dá sob violações de direitos perpetuadas por forças verticais à população, vindas do vínculo de nossa atual gestão pública com os interesses corporativos mais escusos. Daí, não posso deixar de querer me perfilar com as vozes que empurram as paredes desse museu mostrando seus problemas gênicos, propondo mudanças factíveis, utopias urgentes, ou mesmo se permitindo chorar dentro dele. Sim, desejo também o choro para o museu. E desejo essas manifestações em seus corredores administrativos, para seu corpo de funcionários, não para o público, como se somente ele devesse ser educado ou assistido. Isso implica que eu, a todo o momento, revise meu lugar como estrutura daquele prédio, que eu não me deixe submergir em suas paredes brancas, que meu esqueleto não repouse como viga à sua sustentação, mas que só minha pele esteja grudada nela – já que é onde estou, por dinheiro ou não -, habitando a fronteira entre seu silêncio expositivo e o que se ouve, caso deixemos nossos ouvidos apurados aos cochichos dos visitantes que se calam quando os interrompemos com propostas educativas sobre as exposições em cartaz.
Se multidões estiverem ali dentro, talvez as paredes voltem a posição normal. Noventa graus em relação ao solo. Meus ossos deixariam de doer. Não haveria mais esforço. Minha pele não estaria colada às paredes. Meus poros respirariam. Seríamos dois novamente. Saberíamos que o público habita os corredores internos e galerias do museu, mas também reside do lado de fora, o que equilibraria os alicerces institucionais. Sem esse par antitético, as paredes tombam. E, na iminência desse tombo, não posso mais que tentar equilibrar a balança com meu próprio corpo. O risco é grande. Posso ser esmagado. Posso sumir. Mas o que fazer que não ladear às reivindicações do público do museu, que não somente habita suas galerias?
Por isso, e apesar de que escrevi isso tudo, vim aqui somente para corrigir um trecho da minha carta. Quando disse que desejo colaborar algo mais na mediação entre o museu e os amplos setores e indivíduos de nossa sociedade, queria dizer, na verdade, que desejo estar mais nela – e não colaborar mais com ela – ao me candidatar à vaga. Não há essa noção de colaboração no processo de mediação como o concebo, a não ser que seja algo ou alguém estrangeiro – não seu público -, parcialmente atribuindo dois lados às problemáticas levantadas pela mediação e ajudando somente um desses lados, a, então, colaborar.
Não sou nem me faço um estrangeiro quando ali. Sempre compus essa mediação. E agora, Educador II, me matizo. Público: sim, eu sou o museu. Mas museu, não se engane: eu sempre serei o público.