o dia começou com uma ligação de minha companheira, que me disse ter visto um homem baleado num ônibus a frente do que cotidianamente pega. falou sobre ter medo, porque aquilo poderia ter acontecido a seu outro companheiro, com quem mora, num caso desses de reação a um assalto.
durante a tarde, soube que o homem que espancou minha irmã transgrediu a medida que o obriga a se manter afastado dela em trezentos metros. a perseguiu secretamente até uma festa onde estava, esperou ela começar uma conversa com um cara, tirou uma foto de longe e foi até ela, a agarrando pelo braço. depois de ser afastado e ameaçado pelo outro que conversava com minha irmã, ele partiu aceleradamente com seu carro e, no dia seguinte, enviou a foto que fez ao meu sobrinho via whatsapp, numa clara estratégia para afastá-lo de sua mãe. nisto, ela foi com essa fotografia até o fórum onde seu processo contra ele está em tramitação e ouviu da juíza, advogada ou sei lá o que, que esta temia por sua vida, pois, com a recorrência de agressões que ele já havia cometido contra mulheres, não seria estranho que tentasse matá-la.
à noite, fui a um festival de cinema organizado por amigos numa universidade na zona sul deste estado. ali passou um filme que muito me incomodou, por aspectos formais, mas, sobretudo, por reificar uma narrativa sobre certa classe média branca de artistas e seus esquerdomachistas de estimação. ali, mais uma vez, via a pele alva e seus hábitos sendo massivamente enfiados nos meus olhos e só pensava, enquanto isso, naquela cena do laranja mecânica do cara com umas coisas prendendo as pálpebras dele enquanto residia inerte frente a uma tela. pensei que a condição de invisibilidade – inexistência, morte simbólica e real – dos produtores culturais negros, pobres, periféricos-etc. só se dá porque olhamos para estes filmes, que mostram, inescapavelmente, uma realidade que nada diz para nós; sempre estas mesmas pessoas e seus interesses. e escrevi no meu celular, enquanto as cenas do filme seguiam: Nos ainda podemos virar õ rosto
…
cheguei a ser convidado para uma cerveja com as pessoas que assistiram a sessão, mas preferi a companhia das ruas desertas e dum caminhar solitário do que um diálogo masturbatório sobre as qualidades e defeitos daquelas coisas que passaram por aquela tela somente. cheguei a parar para tentar comprar uma pizza vegana pelo caminho, e, infelizmente, ouvi um homem, desses com dinheiro no bolso, agredir verbalmente as duas mulheres que o atendiam, só porque elas não lembravam qual fatia de pizza ele tinha pedido há muitos minutos atrás. me enchi de raiva: pensei em minha mãe trabalhando como empregada doméstica quando ela era menor de dezoito anos; pensei no meu pai tentando amenizar o peso dum trabalho extenuante com álcool; pensei nos meus irmãos e sobrinhos que tem de trabalhar subservientes a tantas pessoas problemáticas; e pensei em mim mesmo, ao ser agredido por visitantes ricos nas galerias no museu de arte do rio. tive vontade de dizer que ele era um merda, que ninguém ali era a mãe dele, e só esperei que ele virasse o rosto na minha direção para que eu começasse isso. mas ele não virou. e foi melhor assim, pois só geraria violência com isso. e quero o pacífico.
peguei um ônibus até o centro e, quando entrei no ônibus que cotidianamente uso para ir à minha casa, me dei conta do que o motorista falava a outro rodoviário: que, ao meio dia de ontem, um homem reagiu a um assalto naquele carro e efetuou um disparo com uma pistola. a marca residia no vidro da frente do ônibus e só aí me dei conta dela: um pequeno círculo perfeitamente cravado no vidro próximo ao motorista. isso se deu em bonsucesso. e me lembrei de outra história: um dia, voltava com um amigo de ônibus para casa e, quando estávamos na altura de bonsucesso, uma menina muito branca um banco a frente do nosso se voltou para trás e nos perguntou onde estava. quando dissemos que estávamos em bonsucesso, ela começou a chorar, ligou para sua mãe e desceu do ônibus desesperadamente. rimos muito desse fato, e de pensar também que o desespero dela era fundado por seu preconceito com a zona norte e a região suburbana. mas hoje sei que ela estava pensando no medo que sentia de morrer baleada assim como todas essas pessoas pobres, como nós, que morrem cotidianamente em lugares como ônibus e subúrbios.
tem sido foda dormir com essa sensação que, simbólica e fisicamente, seguimos sobrevivendo, ao invés de vivermos e nos sentirmos protagonizando a vida, como alguns sentem e conseguem.
escrevo isso agora porque não consigo dormir.