
[Jandir] Tenho pensado em algo como arte sem trabalho, mas sob outra perspectiva: do escrito de artista, esse texto que dá a ver não só certa documentação do feito artístico, mas o que antecede sua feitura, os estados de espírito do artista, suas vacilações, suas projeções sobre o que aquilo irá ser ou quem irá impactar, o que mudou e o que se manteve do projeto primeiro etc.
[Pollyana] Hoje falamos sobre o gesto eficiente em arte, e fiquei pensando no seu interesse pela escrita do artista. Acho que você está buscando evitar o gesto eficiente, talvez. Fazer arte na persistência de um não objeto. Eficiência do gesto não eficiente. Também lembrei que o Hans Ulrich Obrist gosta de perguntar aos artistas quais são seus projetos não realizados, e seu desafio é realizá-los. Mas agora acho que isso resolve demais as coisas, que alguns projetos guardam potência exatamente porque ficam quietinhos lá nas gavetas-cabeças. Não é isso parte da história da arte brasileira?
[J] Eu sigo acreditando que os projetos não realizados e os artistas que existem fora da vista do circuitão são todos fundamentais. Afinal, é assim que a maior parte da produção artística está: não realizada ou não vista de modo amplo. Lembrar disso é lembrar de tudo que não vimos do que foi produzido por gente de pele preta, por exemplo. Aliás, tava hoje fazendo uma visita com um grupo escolar do município, e conversando sobre coisas que eles queriam falar quando estavam em frente a uma pintura. Realmente fico feliz de poder conversar sobre arte com pessoas que pegam ônibus para a Zona Norte, que tem uma vivência corporal outra a da postura comedida do visitante médio do museu, que estudam numa escola pública, que são episteme negra. Pareceu que conversar sobre arte com eles era subverter a instrumentalização clara e o lugar de gênese daqueles objetos artísticos, frutos de uma experiência social de gente rica, erudita.
[P] Eu também sinto falta de conversar sobre arte com gente que tem esse outro corpo. É curioso, mas acho que a gente vai ficando menos exigente na medida que conversa com mais gente do meio. Se a arte é uma linguagem, como alemão, afeto e tupi, só falar de arte com gente de arte é como deixar de se espantar com a língua, não reconhecer o absurdo de uma nova palavra que te joga no abismo dos sentidos, nesse exercício de entrar e sair da língua. É como ver certos trabalhos um pouco anestesiada pelo circuito. Ou, como no português, não estranhar mais ARANHA, CAMUNDONGO, PEIXE FRITO, ARROZ DOCE. Deve ser saudável evitar a constância. Circular.
[J] Pô, mas que lindo isso que você diz sobre a linguagem, de entrar e sair dela ao conversar com outros grupos sobre arte. Penso no que você disse no outro e-mail sobre a matéria estar disponível para a produção de sentidos diversos, e é isso. Me dá uma esperança pensar que ela está aí para quem tiver dispositivos sensíveis – olhos, ouvidos, pele – para tomá-la para si. Mas, já repensando o que acabei de dizer, acho que a matéria tem algo de poder nessa relação, e que nos submetemos a ela também nisso. É meio o que me faz acreditar que, se um Morandi sobrevive à uma feira como a Artrio, ele iria mergulhar o ruidoso Bar da Cachaça num ambiente de silêncio metafísico com muito mais facilidade, caso adornasse suas paredes.
[P] Eu quero levar o Morandi pro bar! Rs. Lembro de quando fui trabalhar numa galeria de arte. Passava dias sem um visitante sequer. Eram horas vendo o vento mexer a folha do vaso de planta, vendo os executivos saírem pra fumar, estudando seus sapatos, sua classe, a maneira como levavam o cigarro à boca e como guardavam os androids no bolso. De algum modo, eu era paga pra fixar meus olhos nas obviedades, até estranhá-las, junto de certa exploração. A exposição era ruim, mas acredito ter aprendido muito sobre arte naquela experiência.
[J] Entendo. Mas penso também no que há de traumático nisso de quando estamos monitores, que evoca nossa imobilidade quando nesta função versus o estado de ação a que associamos os artistas em suas obras expostas. Isso me faz pensar também numa amiga, que foi monitora comigo num trabalho, quando disse uma vez que ver imagens por tanto tempo, como aquelas expostas, faz mal. Não me esqueço disso.
[P] É que talvez as exposições se esforcem a nos fazer ver. A situação de perceber o olho vendo. E daí os dilemas de como fazer ver, ou ainda, o que se quer ver e quem tem o poder de fazer ver. Mas esse cansaço é também a experiência da vida. Experimente ir ao Saara. A vista fica cansada. Não se vê mais nada, ao mesmo tempo que se está imerso. Uma instalação que deu certo. É impossível distinguir objetos, texturas, presenças. Por outro lado, é também um exercício maravilhoso. Algo mais interessante que parte do feed autoreferente do instagram. O desafio é pensar como a arte se coloca diante do frenesi das imagens. Ou como as imagens se colocam diante da pretensão da arte.