Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com>                 29 de março de 2017 18:13
Para: Jorge Soledar <jsoledar@gmail.com>

Me recordo de quando fiz um documentário em áudio, onde gravei a voz de pessoas me respondendo se sou branco ou negro. Lembro que pedi sua resposta, a gravei, e quando você comentou como foi a experiência em sua aula – na qual eu participava -, me disse que não só a pergunta criava uma situação desconfortável a quem era convocado a responde-la, mas minha própria presença ali, enunciando-a, tornava ela mais vil. Pelo que entendi, isso se deu pela candura da minha voz, que – penso – acentuou em você, como entrevistado, a sensação de que responder era aceitar que eu, dissimuladamente, lhe responsabilizasse pelo que diria sobre mim, lhe convocando a congelar a complexidade de seu juízo em sua única resposta, e registrando-a para sempre.

Digo isso porque nunca pretendi indagar assim nesse documentário. Sequer tive um primeiro lampejo que me apontou que esta fosse uma possibilidade. Se dissimulei alguma malícia quando falei, não o fiz por uma intenção planejada. Mas entendi esse meu ato falho como um gesto constitutivo documental ao participar de uma de suas propostas. Era um evento da pós-graduação da EBA/UFRJ, e você cavava buracos num dos imensos espaços gramados da ilha do fundão. Não me recordo como, mas quando dei por mim você já segurava uma cabeça de manequim nas mãos, me propondo a tirar a camisa e lhe deixar fixar ela em meu pescoço – como um segundo crânio – com uma fita adesiva quase da cor da minha pele. E, quase que em seguida, já era fotografado por você, registrando meu corpo agenciado em sua proposta. Nem cheguei a pensar no incômodo que era me desnudar da cabeça à cintura ou da fita adesiva que iria marcar minha pele, já que tudo era realizado num clima jocoso, com muitas risadas, desfocado de seu propósito, apesar de se dar em sua realização. Mais que isso: foi por aceitar participar da proposta de um amigo que não percebi incômodo. Caso fosse alguém por quem não tivesse apreço a me abordar, não aceitaria participar, ou, se aceitasse, sentiria no meu corpo as hesitações que a desconfiança me propicia.

Foi aí que vi as semelhanças e polarizações que me fazem lhe escrever. Por confiar e gostar de você me senti acolhido no que me propôs, e aí só penso que essa é a produção, no fluxo inverso, do que lhe proporcionei. Diferente de produzir a responsabilização pela fragilidade de quem lhe entrevista, você me fez confortável, ainda que imobilizando meu corpo. Mas os procedimentos são igualmente perversos: pela dissimulação, desfocamos a consciência do outro – nosso alvo – do que ele está envolvido em verdade: de uma adequação dele – seja de seu corpo, seja de seu juízo – ao que queremos construir por fim. Reconheço em você uma atenção real a estes detalhes que aqui digo – das perversidades, das dissimulações, do convívio -, e transfiro a seu comentário sobre sua participação em meu documentário o início do que raciocino aqui, já que agora percebo que você me disse explicitamente naquele momento que fazemos trabalhos não só com nossos esforços plásticos e conceituais, mas, sobretudo nesses casos, com como constituímos nossas relações. E disso, acho que não temos tanto controle. Ou, pelo menos agora, sei que eu não tenho, que não tenho controle sobre como trabalhar com como me afeiçoo a alguém.

Fiquei feliz que tenha desejado um depoimento meu. Aproveite como quiser o que escrevi aqui.
Um abraço, Jorge. té breve,