Pique-pedra
(2014)
A dor de sentir meu dedão topando em uma pedra nunca foi maior que a dor em perceber que qualquer pedra deslocada, removida de um lugar a outro por qualquer humano que seja, constitui em si um jogo, que aqui chamo pique-pedra. Não que isso em si seja algo de terrível, particularmente adoro jogar, seja para brincar ou para competir. O problema, ou melhor, o meu problema neste jogo é o desagradável lugar que ocupo nele.
Pique-pedra é um jogo, de duração estendida e indefinível, que ocorre sempre que uma pedra é deslocada semântica ou fisicamente. Só possuo essa informação. Perdoem, pois não posso informar sobre quando o jogo começou ou termina. Provavelmente ele está ai desde o início do mundo. Nem mesmo sei qual a qualidade de cada jogada que acontece nele. O peso de cada participante no jogo me é um mistério ainda. A não ser sobre meu papel nele. É fácil reconhecer que nasci desprivilegiado na hierarquia dos deslocamentos de pedras pela cidade. Tanto para mim quanto para quem me observa sou obviamente menor. Mas, se desprivilegiado sou enquanto jogador, me resta a análise criteriosa de quem melhor está jogando no pique-pedra. E, ao modo de um arguto torcedor de futebol, teco minhas críticas, ainda que, quase sempre, apenas para mim.
Observo os calçamentos em pedra portuguesa em que piso cotidianamente e só consigo pensar que triste fim para uma pedra foi esse, em que infeliz ideia foi essa a de jogar pique-pedra dessa forma, calçando-as no chão, tornando estáticas essas pedras tão potentes, tão bonitas. Também observo aqueles que se aproveitam das pedras portuguesas que saem das calçadas, deslocadas pelo tempo e intempéries, e as capturam, transformando-as em amuletos para si. Estes, que então as guardam em suas bolsas e mochilas, tornam-nas objetos de adoração e contemplação estética individual, nada mais que isso. Apesar da subversão que operam no pique-pedra ao deslocar as pedras portuguesas de seu lugar na calçada, a opção ainda não me agrada justamente por seu caráter individualista. Eles pouco colocam problemas ao gesto de quem colocou as pedras lá. Afinal, quem vai notar a diferença de uma pedra a mais ou a menos no chão? O problema do indivíduo que pega a pedra para si está resolvido, que tem naquilo seu amuleto. Mas o problema social de todas aquelas pedras concretadas no chão não. Pior ainda aqueles que lidam com essas pedras apenas enquanto topografia da cidade. Só as percebem quando topam nelas e levam um tropeção ou as olhando enquanto flâneurs, pensando em sua beleza e no desenho que fazem quando calçadas. – Olha! Como lembra a calçada de Copacabana! – devem pensar. Passivos…
Também pudera. A maioria de nós mal se dá conta que jogamos a todo o momento o pique-pedra. Aposto que mesmo você que lê esse texto nunca havia percebido que a pedra que você chuta no chão ou que pega e passa deste lugar a aquele já está nesse jogo, já que está em relação à outra pessoa que será invariavelmente afetada por essa mudança. E até mesmo quando você pensa numa pedra e muda seu significado: quando você a atribui misticidade e quando você a faz funcional, transformando-a em calçada ou em edifício, nisso se torna absolutamente perceptível o jogo. Como disse antes, as regras são um mistério. Sabemos que mal sabemos sobre pique-pedra… Ou melhor, vocês mal sabem. Eu sei, ainda que pouco, ainda eu mesmo sendo pouco. E escolhi jogá-lo conscientemente numa manhã dum dia de semana qualquer.
A incômoda calçada de pedras portuguesas foi quem permitiu me engajar. Observei uma destas pedras soltas e a peguei. Seu tamanho era bom, cabia na palma da minha mão de forma que eu não a conseguia fechar por completo. Abriguei-me atrás de um poste e aguardei qualquer veículo passar. No momento certo arremessei o pedregulho em cheio na vidraça da porta dum ônibus que estava lotado. Facilmente aquilo se tornou um rebuliço. As mulheres e homens gritavam palavras de ódio contra o moleque terrorista que atentava contra a vida deles, contra a rotina, contra o que nem mesmo sabiam. Eu, na condição do que era absolutamente rechaçado por aquela multidão revoltosa, sabia claramente que eles não gritavam contra o que pensavam opor, mas simplesmente se indignavam pela subversão da funcionalidade da pedra portuguesa e pelo empoderamento da criança, não mais inocente, mas pura potência atentatória contra o que eles eram no jogo: passivos.
Sorri e corri ainda sob os gritos de ódio contra mim, sob o peso vexatório daqueles que eram estáticos em ônibus rotineiros, pensando em como era ótimo tirá-los daquela passividade cotidiana no pique-pedra e em como um deles, ao menos, um dia, poderia escrever sobre o que fiz.
(Publicado, numa versão anterior, na Fala Quebradas!)
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Ninguém podia dormir na rede
O sol surgiu no céu, e acordei com uma ligação de minha companheira dizendo ter visto um homem baleado num ônibus a frente daquele em que cotidianamente se desloca. Dizia sobre ter medo de que aquilo acontecesse a seu outro companheiro, com quem mora, num caso desses de assaltos em seus veículos corriqueiros. E, nesse momento de enunciação, sua voz hibridizou em mim à da juíza que temeu pela vida de minha irmã dias atrás, frente a recorrência de agressões que seu recém ex-marido havia cometido contra outras mulheres. Ouvia, então ecoantes, essas vozes dizendo dos conflitos no seio da familiaridade; não só em nossos cômodos, mas entre nós.
Claro, esse ‘nós’ que digo pouco diz quem abarca, para além de dizer que nele estou. E o digo assim por imprecisão mesmo de seus contornos. Me seriam os assaltantes em algo familiares, como vizinhos de bairro, pessoas com quem estudei? E poderia o vil habitar um lar, paradoxalmente cindindo a convivência ali? Nessas dúvidas, as próprias paredes de minha casa tornaram-se imprecisas, e quando vi já era tarde, já estava num ônibus, mas ainda almejava ver uma família em meu entorno.
Desembarquei. Havia filmes para assistir, um festival universitário, meus amigos que organizavam. Tinha início o segundo, em que logo reconheci os rostos na tela: amigos, amigos de amigos, músicos que tocam na Audio Rebel, por vezes na Lapa. Mas tantos eram os closes que recordei de nossa relação superficial, e não vi mais que suas peles alvas: lembrei que pouco compreendo o que dizem sobre seus desejos, não sem esforço empatizo com o que lhes dói. A epiderme tão próxima ali, em filme, mais me fazia relembrar de nossas distâncias do que o quê nos diz respeito mutuamente. E era compreensível a pele, nem sempre só órgão sensível, mas como limite que é, situando nossa cordial vizinhança, nada mais próximo que isso.
Logo me senti isolado. Decidi sair da sessão e seguir sozinho, parar numa lanchonete, comer algo, seguir para casa – cujas paredes já me pareciam novamente concretas a essa altura. Ali, ouvi um homem agredir verbalmente as pessoas que o atendiam, porque não lembravam qual fatia de pizza ele havia pedido há muitos minutos atrás. Foi então, num rompante, que me veio à memória minha mãe me contando como era ser empregada doméstica quando menor de dezoito anos, meu pai tentando amenizar o peso dum trabalho extenuante com álcool, meus irmãos e sobrinhos trabalhando subservientes a tantas pessoas problemáticas, e me enchi de raiva. Era noite, ou as paredes da minha casa anoiteceram. Tornou-se impreciso novamente meu lar.
Ainda assim, sob a lua, quase um teto, segui para meu bairro minutos depois. Foi quando entrei no ônibus que cotidianamente uso para voltar, e me dei conta do que o motorista falava a outro rodoviário: que, ao meio dia do dia anterior, alguém reagiu a um assalto naquele carro, efetuando um disparo com uma pistola. A marca residia no vidro da frente e só aí me dei conta dela: um pequeno círculo perfeitamente cravado naquela janela próxima ao banco do motorista; um furo abrindo o dentro ao fora, mais uma fresta fazendo passar algo da paisagem externa naquele veículo passante. Me veio à cabeça então algo estranho: pensei no projétil superando a pele humana como limite, já que a perfura, derramando seu sangue no chão. E era estranho pensar na violência do revólver com essa amabilidade. Estranho ver na vilania dos que o manejam uma vontade, para além do ferir, de um contato profundo; de pôr algo do mundo naquele buraco em que verterá o sangue do corpo perfurado. Mas não era tão estranho que, habitando na solidão em que a raiva de alguns se faz, estivesse eu vendo alguma familiaridade no seio dos conflitos. Talvez porque a casa – a nossa casa – não tinha paredes.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo
Oficina de Crítica Literária, prof.ª Cláudia Chigres
2017.1