Nota introdutória
Quando entrei na faculdade, vivi seus primeiros meses com um auxílio desemprego. Sabendo que não conseguiria me manter graduando quando esse dinheiro terminasse, submeti minha solicitação de bolsa auxílio à UFRJ, e me surpreendi: recebi uma carta dizendo que era reconhecida minha carência, mas que não haviam bolsas suficientes para que eu recebesse ajuda.
Nesse ínterim, meu pai – que é aposentado como vendedor de passagens numa viação rodoviária e tinha bem mais que sessenta anos à época – decidiu que iria começar a vender churrasco numa das ruas da Vila da Penha, e parte desse dinheiro dos espetinhos iria me custear a universidade; cerca de duzentos reais por mês, que me mantiveram, ainda que com algumas dificuldades, por mais de um ano na UFRJ.
E aí, um dia, ele infartou. Permaneceu em risco de vida e preso por semanas numa UPA sem capacidade de atender seu caso, sob a alegação de que não havia vagas em unidades com especialização em cardiologia. Graças a um tio que conhecia a chefe de enfermagem de um hospital público na zona sul conseguimos uma vaga para ele. E, assim, um homem negro conseguiu escapar do sistemático etnocídio que opera também pelo sistema de saúde pública brasileiro.
Contudo, restava o risco de que ele falecesse pelas complicações de seu coração debilitado. Era quando eu cruzava da zona norte à zona sul em muitos dias da semana para ajudá-lo lá, internado naquele hospital. E, apesar de terem semanas em que eu nem conseguia ir à faculdade, soube que estava aberto novamente o período de solicitação das bolsas auxílio. Eu tentei novamente, dessa vez com uma carta mais pungente, em que disse do que estava acontecendo, de que pedia dinheiro emprestado agora, que sentia depressão e que, se meu pai falecesse, iria abandonar a graduação para trabalhar. Foi quando consegui a bolsa, de cerca de quinhentos reais, que me manteve aqui até a formatura, formatura essa em que meu pai esteve presente também, forte, de pé e chorando à beça.
Trago estas palavras antes do que escrevi sobre as ações afirmativas para que eu mesmo relembre que falar disso aqui, hoje, é coextensivo à vontade de ver Rafael Braga liberto, de não ter nossos avós mortos pela negligência nos hospitais, de ver mais uma pessoa negra numa universidade pública e de ver suas filhas e filhos numa universidade pública também. Meu nome é Jandir Jr.. Sim, é o nome do meu pai, e ainda é muito pouco nós dois aqui hoje sob este mesmo nome, e até dois aqui é pouco quando tantas outras pessoas morrem, são enjauladas ou mesmo abandonam a graduação. Vivemos nos tempos de um governo golpista. A incerteza pulula. Mas eu não farei menos do que desejar, ainda que com a predição que o medo nos aponta. Desejo que não sejamos poucos aqui daqui pra frente.
(Nota que antecederá minha apresentação dum texto sobre práticas artísticas e ações afirmativas no seminário UFRJ faz 100 anos, no dia 6 de setembro)