publicar textos sobre as exposições que monitoro, investindo contra o estigma em que se desconsidera intelectualmente qualquer enunciação de certxs trabalhadorxs sobre o contexto que xs emprega
Dentro
Programa Sala de Encontro: Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro Abertura: 25 de março de 2017
Jandir Jr.
Foi por ter-se percebido em um museu, e não percebido o museu e somente ele, que Paul Valéry iniciou um pequeno texto assim: “Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso”*. Da primeira metade do século 20, este escrito, O problema dos museus, tem as críticas que Valéry dirige ao museu com base em sua própria vivência quando visitante: no aviso que o adverte a não fumar ali; em alguém, um funcionário, que lhe retira a bengala quando na galeria; nas obras-primas que convivem próximas demais para que seus olhos as possam fruir sem que se perca algo de suas raridades quando sozinhas. É no corpo então que urge o embate com o museu em sua breve crítica, e, longe de uma discussão sobre métodos museológicos − apesar de implicado nela −, o impeditivo ao contato delicioso com as obras é que é visto em sua urgência; na vontade documental que o museu tem para com a obra-prima, sua presença enquanto maravilha se retrai de algum modo, e o exercício do espectar torna-se superficial, já que menos sensível.
Entender o museu como problema para a obra − perspectiva própria de uma primeira modernidade que reivindicou a autonomia da arte ao mesmo tempo em que tomou o museu como plataforma de localização do artístico na instância pública − baseou algumas elaborações que a tomaram por questão ao longo do último século, por vias que ora rechaçaram a instituição museal, ora se deram nela mesma: em seus modelos arquitetônicos em que a autonomia da obra de arte pôde figurar, na emergência da curadoria como abertura a critérios outros ao do museu em sua ânsia universalizante, na crítica institucional e, em tudo isso, na reelaboração do museológico em si, desde em seus conceitos norteadores até em seu aporte expositivo. É aí, nessa senda, que a exposição Dentro pode ser localizada.
Mostra inicial do programa Sala de Encontro, primeiro projeto do novo diretor cultural do Museu de Arte do Rio, Evandro Salles, Dentro se dedica à aproximação do público com a arte por meio da fruição e do engajamento em atividades que devem ser realizadas em seu interior, onde convivem obras de tempos distintos, mas que não se fazem vizinhas por zonas de contato históricas; são seus aspectos mórficos que norteiam vizinhanças, lhes apontando interstícios, o que evidencia suas contiguidades, e apelando ao que se denota em uma fruição primeira, a mais tátil possível. Assim, como o antigo Busto de São Jorge (primeira metade do século 20) carrega em seu peito um espaço vazio em formato circular, que traz a atenção para as reentrâncias de madeira em seu interior, uma pequena gravura de Mira Schendel, no outro extremo da sala, traz em si Círculos concêntricos com 4 pontos (1973), pequenos, dispostos entre seus espaçamentos, dando algum protagonismo aos intervalos entre as linhas circulares. De Waltercio Caldas, Sempre (1967) é composta de quatro sequências de um grid de pregos na parede em que também se dispõem, de quatro formas diferentes, quatro fios elásticos pretos amarrados em formatos retilíneos. De modo análogo ao que os pontos produzem na gravura de Mira, há alguns pregos que sobram, soltos, sem amarrações, que fazem não só os espaços ali vazios se alçarem a uma condição de visibilidade até então impensada − como se, anterior a eles, vazio fosse sinônimo de invisível − como esses próprios pregos solitariamente penetrados na parede nua reluzirem, potenciais em sua condição de hipótese ao elástico já tensionado. Há ainda outras fotografias, pinturas pequenas, instalações centrais, trabalhos organizados modularmente, que evocam incessantemente seus vazios estruturantes. E o design de exposição em Dentro, composto por tablados em que se pode apoiar, grandes acolchoados e carpetes disponíveis para o corpo, livros da biblioteca do MAR organizados em dégradé, junto às obras que mencionei, torna o lacunar adentrável. Trata-se de um encontro sensível com o objeto artístico, para além de sua dimensão cognoscível e conteudista.
É curioso, contudo, que a abertura da Sala de Encontro em sua primeira versão tenha sido coincidente com o decorrer da exposição Lugares do Delírio, terceira e última parte do eixo curatorial Arte e Sociedade no Brasil, projeto de Paulo Herkenhoff, anterior diretor cultural da instituição. Nesse eixo, dedicam-se às exposições aspectos prementes do social: a moradia, a educação e, nessa terceira mostra, a loucura. É previsível, então, ainda que Sala de Encontro e Arte e Sociedade no Brasil compartilhem o anseio pela democratização da arte que norteia o Museu de Arte do Rio, que Paul Valéry se sentisse mal localizado em uma das exposições de Herkenhoff, já que, em sua tomada dos objetos expostos como indícios sociais, nas tais mostras o contato privilegiado e mavioso com uma obra não era primordial, porque não fundamental ao cumprimento da tarefa dialética necessária à constituição de uma crítica que articulasse as obras ao tema que as conjugavam ali, em exposição. Todavia, menos preciso que com Arte e Sociedade no Brasil, resta incógnita uma possibilidade: se Valéry não se seduziria por Dentro; como se sabe, ainda que Sala de Encontro faça a conjugação museológica de obras que Paul Valéry tanto repudiou, suas preocupações se encontram habitando o museu, na vontade do contato inaugural do sujeito com o objeto artístico, indagando o que mesmo algum visitante indagará quando um espólio vier a seus olhos pela primeira vez, como o Capacho (2016) que reside no chão de Dentro, obra de Dias & Riedweg, em que está escrito: O que fazemos aqui?
Nota
*Valéry, Paul. O problema dos museus. ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12: 31-34 , dec. 2008. ISSN 2178-0447. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200003.
Publicado na Arte & Ensaios nº 33: Impalpável, em 2017.