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Quem sabe seja neste texto finalmente uma despedida? Seus olhos cerrando e sua boca aspirando o máximo de ar que possa – isso se chama bocejo: minhas letras indo atrás do pouco oxigênio. Algo que eu escrevo finalmente sem ar, com menos fôlego ainda do que o meu outro trabalho de conclusão de curso. E, no que não há a respiração, o oxigênio como rastilho – será? Em conseguir não desejar mais uma profissionalização acadêmica, escrever aqui terá o dispêndio dos que publicamente atearam fogo em si mesmos, encerrando suas vidas? Talvez me falte vigor, o tônus monástico ardendo… é tão pouco abdicar de uma profissão, dum rumo desses, quando há o que se percorrer. Mas no que afinal eu caminho ao afirmar esta como minha última pesquisa? Talvez seja tal dúvida que me faça sentir calor assim.
Thích Quảng Ðức está torrando perpetuamente², fixado na fotografia que, por sua vez, flameja e libera uma fumaça escura que sobe aos céus; uma fotografia que só relembra um monge que já não exatamente era quando registrado foi; uma foto que não queima realmente; que, na verdade, torra por que o que registrou torra, e só; o arquivo que queima quando fala da queima no mundo, pois todo o mundo queima quando queima o um, e sua memória não escaparia de se queimar junto; eu tenho minha face quente por isso: há calor nesta monografia, e sua quentura não vem como a dos jornais que toda manhã acabaram de sair das prensas ou das bancas onde estavam expostos ao sol: seu calor vem de si como carvão, que é arquivo de sua própria obsolescência (e um fôlego baixo, pois o pouco ar se consome pouco a pouco perto dela, já que brasa).
É, um texto carbonizado não seria escrito por qualquer pessoa. E cabe dizer sobre mim, à guisa de apresentação, que 2016 foi um ano em que não esperava, mas entrei em disputa com minha orientadora no final de tudo. Pois apesar de não flamejar, tenho me posto a defender arquivos que não conservam, mas vem a destruir peremptoriamente seus objetos. E quando sou eu que os crio, arquivos, isso se torna não exatamente mais fácil – essa palavra me ocorre nas complicações -, mas mais corriqueiro, sendo eu próximo, tão neles, tão.
Bem, Beatriz não queria as páginas³ vazias, ainda que eu lhe dissesse que estavam cheios outros vazios na ausência de palavras em meu tcc. E havia palavras nas páginas, ainda que só nos rodapés, que diziam respeito ao meu portfólio4, em que me arquivo nos meus atos, que datam desde 1989, ano em que nasci, e a maior parte das páginas daquela monografia eram de uma alvez imaculada sim, mas era essa ausência que localizava os usos do meu portfólio no universal acadêmico e, em contrapartida, minha própria monografia, em sua constituição experimental, em seus rodapés protagonistas, acabava por se inscrever no conjunto de coisas que fiz e que até agrupei num portfólio ao lhes dizer como práticas artísticas minhas, mas mesmo assim Beatriz não queria as páginas vazias.
Mesmo quando eu lhe disse que existiam pessoas criando trabalhos monográficos experimentais como eu, era pouco, ou muito: essa desmedida – para mais ou para menos – caracterizava qualquer desencaixe metodológico motivo de desconfiança, e talvez essxs artistas graduandxs, mestrandxs, doutorxs não estivessem realmente pesquisando porra nenhuma; talvez só aproveitassem a universidade para sustentar seus atos improdutivos, produzindo-os em detrimento de qualquer tarefa epistêmica, falseando esse compromisso.
Não foram essas palavras que ela disse: isso sou eu – minha mente depois da audição. Tanto que após defender esse tcc ouvi a aprovação do trabalho com nota máxima quase que sussurrada frente às considerações dela, depois das falas da banca, quando deixou clara sua preocupação com esse meu investimento, que talvez não me ajudasse a formar um corpo bibliográfico convincente a pleitear-me no mestrado.
E não cheguei a tentar o mestrado. Entrei no mercado de trabalho, entrei mais a fundo nas obrigações financeiras da família. Pensei em 2017 me sentir vazio pela circularidade vã entre meu trabalho e a casa, que deveria deixar meus pais e alugar um apartamento com mais duas pessoas, ou gastar essa grana pesada para fazer uma especialização na universidade em que eu sempre achei que não conseguiria entrar sem ser abordado pela segurança. Optei pela última, descobri que sua entrada principal é livre: me avizinhei novamente de aulas, trabalhos, teorias sempre tão estrangeiras ao cotidiano.
Por exemplo? Optei por permanecer junto aos meus pais, e meu pai morreu no final de 2017. Dei sorte ao escolher viver essa companhia, tão incriminada frente ao afã por independência da vida adulta. Independência do quê? Por que não um redesenho das relações parentais para uma relação mais fraterna, ou fraterna de outro modo? Bem… o que desejava dizer é que meu pai faleceu dentro do hospital Miguel Couto lentamente, padecendo pouco a pouco, também por alguns casos esparsos de negligência médica e maus tratos… acompanhei e sofri esse processo. Faltei por uma semana às aulas da pós-graduação, sempre acompanhado pela estranheza da proximidade entre o hospital e a universidade. E agora, para ir e voltar do curso, necessariamente passo em frente ao Miguel Couto. Uma memória amarga seca minha garganta sim, e me pego a pensar, por mais absurda que seja a relação, o porquê sou obrigado a ter por vizinhos esses dois espaços e como eles nunca vão coadunar, como permanecem estranhamente estanques, o luto e as teorias que leio alheio na sala 516L.
Olho agora o relógio. Tenho nele 23:23. Vejo minutos e horas de mesmo número constantemente desde janeiro, pouco depois que perdi meu pai. Essa estranheza comumente vejo por um chamamento espiritual, apesar da leitura de Freud na pós, semana passada.
Naturalmente, por exemplo, não damos importância ao fato quando entregamos um sobretudo e recebemos do guarda-roupa um tíquete com o número, digamos, 62; ou quando descobrimos que a nossa cabine num navio tem esse número. Mas a impressão é alterada se dois eventos, cada qual independente em si, ocorrem próximos: se nos deparamos com o número 62 diversas vezes no mesmo dia, ou se começamos a perceber que tudo o que tem número – endereços, quartos de hotel, compartimentos em trens – tem invariavelmente o mesmo, ou, em todo caso, um que contém os mesmos algarismos. Sentimos que isso é estranho. E, a não ser que o indivíduo seja totalmente impermeável ao engodo da superstição, ficará tentado a atribuir um significado secreto a essa ocorrência obstinada de um número; entende-lo-á talvez como uma indicação do período de vida a ele designado. Ou suponha-se alguém empenhado em ler as obras do famoso fisiólogo Hering, e num espaço de poucos dias recebe duas cartas, de dois diferentes países, cada qual de uma pessoa chamada Hering, embora esse leitor de fisiologia jamais tenha tido contato com qualquer pessoa chamada Hering. Não há muito tempo um inventivo cientista (Kammerer, 1919) tentou reduzir as coincidências dessa espécie a determinadas leis, privando-as assim do seu estranho efeito. Não vou arriscar-me a decidir se ele foi ou não bem-sucedido. (FREUD, 1925, p. 13)
(Tudo o que estranho – a universidade e o hospital, os números – já me foram comuns: essas horas, quando as vi sem memórias, eram só tão marcantes, formalmente tão equilibradas; esses prédios quando díspares… e agora reavivam um pelo outro tudo no meu luto.)
Dói. Aquilo que já foi familiar e retorna tão assombroso já não sabemos ler com ceticismo ou mesmo transcendendo-lhe. Sua dor oscila sem precedentes, entre cosmogonias5… o evento traumático – há estranheza aqui – se dá nesse contínuo, numa origem sem princípio6… quando mesmo que começou? Não sabemos onde arranhamos o braço, como se saber disso nos apontasse o cicatrizante; motivo homeopático; a origem e a cura num só; ouroboros7.
Mas eternamente é palavra muito dura: tem um “t” granítico no meio. Eternidade: pois tudo o que é nunca começou. Minha pequena cabeça tão limitada estala ao pensar em alguma coisa que não começa e não termina – porque assim é o eterno. Felizmente esse sentimento dura pouco porque eu não aguento que demore e se permanecesse levaria ao desvario. Mas a cabeça também estala ao imaginar o contrário: alguma coisa que tivesse começado – pois onde começaria? E que terminasse – mas o que viria depois de terminar? (LISPECTOR, 1998, p. 26-27)
A constância é como uma esfera empoeirada. Apoia sobre si mesma sem rolar, tendo sua superfície una e suja como testemunha de sua perene imobilidade. E na manutenção do mesmo ao mesmo ao mesmo ao mesmo, aquilo que poderia mover-se quase que naturalmente, estaciona: é toda a estabilidade.
Relembro. A metodologia da pesquisa. O que não se deve fazer. Há quem reclame a norma culta. E brigas nas pós-graduações sobre dissertações que mais são romances. Não desejo defender ninguém, assim como não defendo pixadorxs. Mas também não nego que xs admiro. E percebo, pouco e lento, esse problema seguindo pra fora da prática de artistas dentro das universidades. Um desvio metodológico, uma contrametodologia, é possível achar até onde? Haverá um pequeno químico escrevendo um artigo mal redigido que será rechaçado por seus pares? E será um problema da sua pesquisa em si? Não é disso que digo. Há um problema na forma da pesquisa. Em toda forma da pesquisa. Relembro. Não há instruções pra tudo que devemos escrever. E tudo como devemos escrever… até quando tudo? Nós, que somos no estranho ao universo acadêmico, lhe traumatizamos no que fomos familiares: na norma, estamos um gérmen insubmisso, cavando… ou tocha acesa acesa… fervilha. Esse é o medo que… esta… que abana este carvão8. Nunca o método: um medo.
(crepita)9
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¹ Mais fazer incômodo à leitura retilínea do que necessidade de um referencial. Título.
² Me refiro a fotografia do monge budista vietnamita Thích Quảng Ðức durante sua auto-imolação em chamas nas ruas de Saigon em 1963, registrada por Malcolm Browne, um fotógrafo da Associated Press.
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4 Que está disponível em http://processofolio.tumblr.com/. Mas o chamo agora de arquivo.
5 Cosmogonia é um mito fundador, né? Tipo um princípio? Tava pensando aqui no científico e no espiritual como duas cosmogonias em antítese, e que já não cabem ao estranho.
6 Peguei essa ideia de um texto da Mônica sobre Ão, uma obra de Tunga, relacionando-a à produção dela mesma como artista. Me enviou, mas não sei se irá publicar. Estranho. Referencio um texto que talvez não existirá publicamente. Mas, em suas palavras lá, há uma indicação sobre o contínuo sendo uma origem sem princípio. “BASUALDO, 2011, p. 119”, ela disse.
7 Me refiro àquela imagem icônica de uma cobra mordendo o próprio rabo, que eu já sabia como ciclo, signo de uma continuidade sem início, mas que ainda não tinha pensado como uma serpente envenenando-se, e menos ainda que isso poderia ser positivo, homeopático.
8 É do Medulla… https://www.youtube.com/watch?v=hQ0siYr99AI
9 Confronto o último parágrafo deste trabalho de conclusão de curso.