O centro dessa operação está no modo como os sapatos adquiridos pelos ex-escravizados não foram, num primeiro momento, necessariamente calçados, como observa texto de Louis Albert Gaffre, narrado como introdução a uma sequência de imagens de homens negros com sapatos a tiracolo no vídeo Ao rés do chão: “o primeiro gesto da liberdade foi (…) aprisionar os pés nas fôrmas escolhidas – por consequência, mais ou menos adaptadas. Digo mais ou menos, mas a verdade da história me obriga a dizer muito menos do que mais, porque os bons pés dos bons negros, pouco acostumados a estar estreitados, protestaram com estardalhaço e foi o suficiente para que se visse o espetáculo mais inesperado como primeiro efeito da libertação. Negros e negras, em todas as cidades para as quais se dirigiam, passavam felizes e orgulhosos, com a postura altiva, descalços. Mas todos levando um par de sapatos – por vezes à mão, como um porta-joias valioso; por vezes a tiracolo, como as bolsas vacilantes da última moda mundana”.
por Clarissa Diniz, num texto crítico sobre a exposição Baixa dos sapateiros, de Tiago Sant’Ana.