Destinatário: Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

Rua Dom Gerardo, 68 – Centro – Rio de Janeiro – Brasil.

 

Uma vez, eu entrei aí no Mosteiro de São Bento bem cedinho. Era um domingo, no horário antes do horário em que eu ia ao trabalho. E eu trabalhava no centro na época, num museu perto daí. Nesse emprego, eu costumava deixar o tênis, meu uniforme numa bolsa, e só lhes vestir ao trabalhar. Porque fora desse regime de carteira assinada eu me vestia de branco. Eu visto branco até hoje, com roupas usadas que compro em brechós e chinelos brancos nos pés; chinelos surrados do tanto que os uso – eu uso somente um par, para economizar no uso de plástico no mundo, e economizar na minha própria grana também -. E uso o branco porque gosto. Não é nem um sinal de iniciação no candomblé, nem de adesão às práticas sikhs, nem de ser cavalo de umbanda, nem enfermeiro de hospital, cozinheiro, coisa assim. Tudo isso me seduz e inspira, é claro. Gosto de carregar as semânticas de cura, paz, de caridade, serviço, de espiritualidade que essa cor tem quando está a cobrir todo o corpo de alguém. Mas somente carrego isso num enlaçamento superficial. Não sou identitariamente nenhum desses que vestem o branco. Sou só um outro alguém, um outro homem de roupas claras. Por mais que eu viva a fé, a trégua, a calma por vezes, sou um que assim está por uma deliberada escolha pessoal, e nada mais.

Mas, quando entrei assim no mosteiro, vi alguns olhares na minha direção. Alguns disfarçavam a curiosidade, me olhavam e desviavam o olhar para o chão. Boa parte, digo. Homens de uniformes acompanhavam meus passos calmos em direção ao interior barroco da igreja, uns outros tantos me viam sair e pisar sem firmeza nem direção no pátio externo. Eu visitava o Mosteiro para fazer uma hora, para aguardar minha hora de trabalho, pois queria rever o esplendor colonial dos dourados e das volutas dos séculos que passaram amargos demais nesse sul. E eu mesmo me estranhei, naquela época, em ter reconhecido beleza nesse empreendimento de dor, erguido compulsoriamente pelos meus. Estranhei que eu olhava aquilo ao invés de reviver constantemente que os corpos que fizeram meu corpo foram dos que poderiam ali estar erguendo o prédio, ora açoitados, ou sendo catequizados, como uma borracha passando em suas cabeças. Eu, anestesiado, olhando praquele espaço suntuoso, ignorava algo daquelas que me burilaram lentamente em suas próprias carnes, em favor da carne de quem me embranqueceu um tanto a pele mais recente. Por isso, eu acho, penso nessas coisas agora: eu também carrego em mim um pouco dos olhos dos que olharam de outra maneira aquilo tudo: duma maneira mais urgente, ainda mais violenta. De uma violência inaugural, talvez. Sem a solidez que os séculos deram em mim, calcificando um tanto dessas dores em meus ossos.

Um cara me chamou mais a atenção naquela manhã. Ele, sentado com uma mulher e uma criança – que talvez fossem sua família -, não buscava disfarçar um olhar de ódio contra mim. Eu vi ódio naqueles olhos, mas havia algo que mesmo não encaixável nessa categoria, que mesmo que eu não tenha certezas se ele me odiava ou não, sem dúvidas atendia ao que há de pior no que se pode sentir por alguém. Não é possível que alguém fixe o olhar deliberadamente sobre outra pessoa por tanto tempo, e daquela forma, sem pensamentos ruins para com ela. Não é possível que ele me visse com carinho. Aqueles olhos não me demonstravam carinho, nem desprezo, mas o oposto disso. E eu conheço os olhos do oposto do carinho, mas essa é uma outra história. Talvez ele mesmo quisesse proteger sua família de mim. Quer dizer: sabe-se lá o que meus próprios olhos também não estavam passando para os dele.

O que cabe dizer é que comecei a questionar minha andança por aí, ao ser observado. Pensava que eu estava à toa demais, que circulava demais, que tava dando mole, vestido daquele jeito, e ainda abusado, olhando cada centímetro da igreja, tirando uma de turista quando minha cara e minhas roupas testemunhavam o contrário. Pensei que ficar espiando nas portas entreabertas fazia com que aquele cara – e talvez outras pessoas – estivessem desconfiadas de mim, com medo de que a qualquer momento eu arriasse prum santo num cantinho do edifício secular, e que ofendesse a família tradicional, talvez. Aí foi quando me dei conta do absurdo que era pensar dessa maneira sobre tudo e sobre mim mesmo, facultar a mim o direito de ir e vir neste espaço, como qualquer outra pessoa teria direito, mesmo que em tese (é algo até comum comigo, d’eu pensar que certos lugares não são pra eu estar). Por isso, não muito contrariado, desci a rampa e me direcionei ao trabalho. Já tava quase na hora de bater o ponto e entrar.

Há pouco, retornei ao mosteiro. Por uma aula que teria aí. Cheguei cedo, vim pelo lado oposto ao do início da Rio Branco, na praça Mauá. Entrei por dentro das ruas de dentro. Quando vi, era mais fácil subir pelo elevador até o mosteiro, estava em frente a porta de vidro que o resguardava. Eu a empurrei.

– Pois não?

– Oi. Eu queria ir no mosteiro.

– Quer mais não?

– Oi?

– Ué? Você queria, não quer mais?

– Ah! Claro, claro! Não, pô. Eu quero ir no mosteiro sim.

– Ali, ó. Quarto andar.

– Muito obrigado.

– Ô, rapaz! Você é capoeirista?

– Eu? Ah… você diz por causa da roupa, né? Não. Sou não. É só por gost…

– Olha só, não pode pegar santo lá em cima não! Não pode pegar santo, tudo bem?

– Claro, fica tranquilo.

Chegaram a me perguntar se não seria possível agir por vias legais contra o mosteiro e o trabalhador que falou isso para mim. Mas cara, é interessante: eu nunca moveria um dedo contra ele. Primeiro: nossa justiça atende a quem? Os meios legais têm encarcerado e penalizado a base da pirâmide social por problemas que escapam às mãos da imediatez prisional. Quer dizer, prendemos um monte de gente por problemas que são heranças da cisão escravocrata nessa terra. Como culpabilizar esse tanto de pessoas por um problema entranhado nas estruturas de nossa sociedade, nesse corte que mantém tantas pessoas abaixo do digno para viver? Eu não sei, mas continuo convencido de que a tal legalidade mais funciona como um projeto de segurança do patrimônio privado que o de uma justiça que nos atenda, na radicalidade que existiria se conjugássemos de forma sincera o ‘nós’, a primeira pessoa do plural. Leia-se com isso que percebo que todo o patrimônio é das elites; que eu mesmo não reconheço que haja um patrimônio verdadeiramente público nesse planeta. É importante também d’eu reconhecer até onde minha erudição é o que permite que não seja eu falando o que esse homem falou pra mim naquele dia. Ver os privilégios de toda minha educação acadêmica-descolonial, antirracista, contra-hegemônica, que ainda assim continua resguardada a poucas pessoas, como eu. É o que contribui à desigualdade: o acesso ao bem-estar social perpassa o capital cultural também, caminha junto a toda essa monetização do cuidado em nosso mundo. Enfim, é tudo tão difuso fora da minha bolha, tanto racismo entre os nossos, tanto feminicídio, tanta fobia entre aquelas que poderiam se ver mais próximas. Entre nós.

Em segundo: pensando por vias estratégicas e desconfiadas, acho que é mais fácil a vocês, empregadores daquele homem, o penalizarem do que penalizar-se pelo que ele mesmo disse. Imagino que seja mais fácil reconhecer a culpa no trabalhador do que em tudo o que a igreja contribuiu para a perseguição dos terreiros e da religiosidade preta, do saber negro que, ao mesmo tempo, é solo daí e faz com que alguns temam o chão donde se ergue o edifício chamado cristianismo. Com certeza seria o mais fácil: vocês teriam respaldo da sociedade ao demitir alguém da classe trabalhadora por ter falado algum absurdo. Nós costumamos pôr todos esses problemas sob responsabilidade da moralidade individual, e pouco sob a complexa e depressiva responsabilidade do curso das batalhas de nossa história, o que seria muito mais difícil; seria algo que talvez nos poria em depressão num primeiro momento, ao invés de nos oferecer respostas imediatas.

Muito difícil que eu não diga, nesse momento em que falo sobre o que ao mesmo tempo pavimenta e amedronta o cristianismo, de que me fizeram crer que a miscigenação afetou duas coisas européias: a gramática e a bíblia. Aí, o solo de que tenho falado, o solo preto do cristianismo: a religiosidade cristã, assim como a língua portuguesa, já não é a mesma nesse país em relação aos outros países cristolusófonos. As contribuições negras – que vejo como contribuições, mesmo que outros vejam como profanações – são imprescindíveis para o exercício da fé cristã neste chão. Não tanto por serem caras – já percebi que perseguem qualquer coisinha de espiritualidade negra que adentre os templos mais pomposos. Mas por serem inescapáveis: pouco se sabe o que rezaríamos se, subitamente, nos tornássemos europeus amanhã.

Assim como o idioma que mudou por cada mulher negra que segurou e amamentou todo o país, ensinando aos pequenos ouvidos o português do porvir colonial, a religião não é o um, não há sua pureza. Ainda assim há o medo regulador, o mais importante para se esteja sempre separado o cristianismo e o candomblé, com um acima e outro abaixo, respectivamente. Por isso a igreja, na sua face perversa, fala pela boca do trabalhador quando eu entro de branco no Mosteiro de São Bento. É a catequese, a missão jesuíta, o epistemicídio falando comigo. É a manutenção da branquitude me dando as cartas do jogo. Mas nisso me imaginei sendo como uma borracha, ou um liquid paper, quando aí cheguei. Estranho se ver como um apagador desses, mas foi assim mesmo comigo: me vi preenchendo de branco as páginas já tão cheias de letras da bíblia. Enchendo-as do branco mais escurecido que eu já pude conceber.

Olha, eu acho que venho lhes dizer de tudo isso por uma falta que se abate em meu peito. Já comentei sobre isso com minhas companheiras de mestrado, com meus amigos, com minhas amigas, com tantas pessoas, e um silêncio se mantém. Uma amiga negra insinuou qualquer coisa mais ruidosa quando disse, sem muito contextualizar, que os negros se vestiam de branco para as guerras. Por outro lado, há o significado da palavra trégua, atrelado ao branco das bandeiras brancas quando flamulando nos campos de batalha.

Essa carta nada mais tem a dizer. Eu digo: eu não tenho nada mais a dizer por esta carta. A envio na vontade de dotar de mais significado esses acontecimentos comigo e minhas vestes brancas do que o estranho vazio que sinto, que talvez seja um vazio irreparável, de algo que se perdeu, de algo que eu não possa mais contar. Por outro lado, digo que tenho conversado mais sobre a umbanda, que tenho conhecido mais a umbanda, e, ouvindo mais umbandistas, tomei hoje a lição de que se usa o branco nas casas, e de que seus fiéis o usam, para receber de outros, encarnados ou não. Que a assistência se veste de branco para receber como consulente e como quem acolhe, que a parte mais importante no corpo dos médiuns é o ouvido, que a cor branca recebe a cor luz de todos os espectros e a reflete. Isso tem a ver com o que busco aqui. É importante que esse texto seja uma carta, afinal. Só aí há a possibilidade de uma réplica, quiçá de uma conversa. Só aí poderia, ainda que somente nas minhas expectativas, receber vocês.

Por isso, por sua caixa postal aberta, agradeço muito. Mesmo.

Daqui, com amor,

Jandir Jr.