do sul: e-mail enviado à origamista Mari Kanegae.

Entrego envelopes brancos, com folhas em branco, em cada casa da América do Sul. E lhe digo que aprendi a dobradura que faço nelas ao trocar mensagens escritas quando criança, com outra criança de minha família, mas da parte situada no Uruguai. Dobras que, por sua vez, eu e ela aprendemos com nossos pais e avós; uma dobradura que existe há algumas gerações, vincando as correspondências de uma família vindo a ser em lugares cada vez mais distantes uns dos outros, mas a partir deste mesmo continente.

Quando falo de continente, é claro, digo da parte sul da terra americana. Esta que, em meados do século XX, foi pisada por artistas que criavam obras geometricamente abstratas. No Uruguai, no Brasil, Chile e Argentina, tinham em comum não pintarem gente nas telas, mas sim triângulos, curvas, cores chapadas. Viam ao longe uma nova sociedade. Pintavam o que adornaria as paredes futuras. Pensavam a fundo em um ocidente sem classes, com os meios de produção nas mãos do povo, em domínio tecnológico sobre o globo. E por isso desejavam a América Latina moderna; tão concreta quanto o concreto respingado nas botinas trabalhadoras, tão exata quanto essas pinturas sem representações. Mas tal mundo nunca veio à luz.

O que é diferente das estradas de algumas fazendas, que vieram e aqui estão, passando por cima de imensos retângulos, misteriosamente marcados em certos campos gramados. No Acre e Bolívia, no Mato Grosso, Amazonas e Rondônia, temos estradas e plantações de milho destruindo valas, conectadas, que formam gigantes desenhos geométricos. Igualmente geométricos ao traçado retilíneo que, sobre eles, agora os sufoca. Formas descobertas somente na década de oitenta, quando sobrevoadas. E que hoje têm por nome geoglifos: círculos, octógonos, hexágonos, tantos outros traçados perfeitos, cavados ao longo de duzentos metros de diâmetro, há mais de dois mil anos. Dizem que Pitágoras ainda pensava em seu teorema quando surgiram no continente que hoje chamamos de nosso. Testemunhos que nos são misteriosos, de sociedades antiguíssimas. E como poderíamos os entender, nós, cidadãos daqui, dessas nações pós-colonizadas? Olhamos geoglifos como os policiais olharam para as pegadas das sandálias quadradas do cangaceiro Lampião, sem saberem para qual lado tinha ido, se ia ou se voltava. Despistados pelas formas de pegadas sem direção, eles me lembram de nós, olhando como rastros certas antiguidades continentais. Contudo, a despeito de minha atenção, geoglifos não são as únicas geometrias ancestrais no sul em que vivemos.

Atento ao Sankofa no portão da minha casa. Curioso: eu, olhando tão distante, pras pinturas modernistas, pros geoglifos acreanos. E Sankofa, tão perto: um dos adinkras Akan, que tem nele o significado de que nunca é tarde para pegar o que ficou pra trás. Gente do povo Akan foi escravizada. Pessoas africanas que, pelo conhecimento técnico com a metalurgia, ergueram os primeiros gradeados brasileiros, adornados com o que menciono, essa voluta sígnica. Adornos que são feitos até hoje – e por quê? Talvez tenha escapado aos olhos dos escravizadores, mas, para a diáspora africana neste país, Sankofa avisa que há um passado a ser apropriado, que é de posse da população negra; um sopro de vida africana em corpos e grades da colônia caída.

Mas só atentei ao Sankofa no portão da minha casa, Mari, pois a sombra dele aparece nas fotografias que lhe envio.

Você me fez saber que o origami é outra geometria ancestral a ser mencionada. Foi te lendo que aprendi que, por aqui, o origami veio tanto da influência de imigrantes japoneses quanto da de espanhóis dobradores de papel, aportados na Argentina. Ao te ler, fui esclarecido por seu conhecimento, sua larga prática. Então escrevo a você, pensando que não gostaria de ser visto como um origamista amador, na ocasião em que você abrir meu envelope e visualizar simples dobraduras, num sulfite igualmente simplório. Aqui, portanto, envio um e-mail com fotos da carta, para dizer, quando você recebê-la – e caso já não tenha a recebido -, que não tenho qualquer pretensão origamista. Trata-se somente de mais uma, diminuta, dentre tantas e isoladas ocorrências geométricas nesta porção do planeta, e que quis compartilhar com pessoas de fora da minha família.

A você, uma das tantas pessoas de fora da minha família, atenciosamente,