O texto abaixo reproduz uma carta, anônima, que foi deixada na região portuária do Rio de Janeiro, no dia 15 de agosto de 2022

Esta carta foi largada no banco de uma estação de VLT. Em frente à parada, há um museu. Se olharmos com atenção, veremos que o prédio não tem mais de três andares, e no seu terceiro piso, aproveito para contar, sete pessoas se reuniram num sábado à tarde, parecendo animadas em conversar com quem visitava o local. Eu, o narrador, estava no grupo, mas observava-as. Desconfiado, perguntava: “vocês estão mesmo confortáveis em interagir com gente desconhecida?” Contudo, recebi respostas sorridentes, e me fiz crer que estavam.

Uma das pessoas traçava a estratégia de chegar perto de alguém e perguntar, de supetão, algo como um “tudo bem?” E muito do que pensava conversar depois dessa abordagem versava sobre o próprio museu, a temática das obras expostas ou os motivos para se estar ali. Seriam então conversas que, tomando partido do microcosmo museal, mirariam no que ela e outras visitantes tinham em comum, não nas suas diferenças. Esse método despretensioso, a princípio só dela, vingou: numa escolha unânime, o coletivo decidiu por puxar assunto de modo prosaico, desejoso por ouvir impressões desde o teto que nos abrigava.

Separaram-se então em três duplas. Algumas levaram objetos para tentar chamar atenção. Outras andaram, escolhendo com quem conversar. Eu fiquei de fora, e só as reencontrei depois de dez minutos, enquanto descíamos do museu. À essa altura, as palavras rarearam entre nós.

Uma pessoa disse que foi difícil. Outra, acrescentou: “Mais difícil do que imaginava”. Saindo do elevador, chegamos no Boulevard Olímpico e, para completar, começamos a ver a rua como o avesso de qualquer conversa. Porque era um lugar que desafiava essas vontades de ágora. Que retirava-nos as paredes. Que, com sua falta de limites, nos fez pequenas. E, de tão minúsculas que estávamos, nos agrupamos em roda. Ali, enquanto conversávamos, hesitantes, sobre abordar desconhecidos, soube como cada par agiu dentro do museu.

Uma dupla ouviu uma visitante cantar, juntaram sua voz à dela e, engatadas à cantoria, trocaram algumas palavras. Outro duo optou por uma estratégia indireta: numa pequena sala, permaneceram conversando afastadas, de modo que quem entrasse não pudesse circular fora do diálogo que acontecia. A terceira dupla aproximou-se de um casal já apresentando suas intenções, e lançaram, mesmo entre embaraços, algumas perguntas.

A despeito das estratégias desenhadas, parecia que nada disso funcionaria do lado de fora em que estávamos. Não havia mais museu, obras, teto, paredes. Então, nós pensávamos: como, e sobre o que, falar?

Esta carta que você tem em mãos vejo como uma alternativa a tais hesitações. Depositei-a, semanas depois, num dos bancos do VLT Carioca, Parada dos Museus, onde nos despedimos naquele dia. É que, antes da despedida, uma das pessoas relembrou dos cemitérios de pessoas sequestradas, escravizadas, descobertos em parte nas obras de implementação do próprio VLT Carioca. E outra das pessoas chegou a lembrar de um monumento feito de pedras de tropeço que, espalhadas por Berlim, faz turistas toparem seus dedões em pequenas placas elevadas no solo, com nomes das muitas vítimas da Shoá. Entre tropeços, desterros e o que constitui tantas ruas, como uma terceira pessoa comentou, percebemos então que era importante pedirmos licença, irmos com respeito e calma, antes de prosearmos sobre andar onde pisamos. Assim, uma carta anônima me pareceu uma boa forma de prometer esta conversa; quando nossos pés se plantarem num chão; quando um chão sustentar nossa caminhada.

Fica aqui nossa promessa.