mensagens escritas por mim, Silvana Marcelina e André Vargas para a exposição individual de Rodrigo Ferreira, Arapuca-cascabulho, que inaugurou no dia 11 de maio no Ninhu, em São Paulo, e encerrou no dia 1 de junho

Ban [Jandir Jr.], [13.4.2024, 12:24]

deré, tiba, lembro daquela conversa sobre a mochila do bledo. Aquela que inspirou uma pintura da Silvana. Uma bolsa preto-e-branca, trançada de um jeito que não se vende em lojas, mas nas ruas. Uma mochila que, como um ícone, fazia vislumbrar uma coisa difícil de pôr em palavras, sobre as pontes que descem entre o nordeste brasileiro e o subúrbio carioca. Como uma rede pendulando entre cá e lá, com uma ponta fixada no oceano atlântico e outra naquela parte, quase-tordesilhas. Lembro da mochila, mas também lembro que nunca percebi sotaque no meu pai. Que certo jeito de falar, de escrever, de comer, de dançar são para mim uma expressão tão cristalina que me surpreende quando outros veem uma coisa estrangeira no que me parece, sui generis, sudestino. Aí penso no que o trabalho do bledo diz sobre as faixas do André, as minhas performances, sobre o quartinho que Silvana fez numa exposição. Nosso ambiente de formação é qual? Para além das academias que frequentamos, aposto que nossas escolas são contínuas às escolas de chão de terra batida que nossos antigos pisaram. Nosso humor vem embalado por uma quentura que a antiga capital brasileira nunca experimentou. Escrevemos rimas que foram sonhadas por rimadores descalços. E assim, cosmopolitas estranhos, pendulamos entre cá e lá, com identidades feitas não do enraizamento, mas da migração. O que, certamente, fala sobre um todo maior; uma multidão caminhando sem parar, já cansada, mas que, ao olhar suas próprias pegadas, pensa seu andar feito não só do que aponta no horizonte, mas também do que se afastou. Dedão e calcanhar: duas setas.

Tiba [Silvana Marcelina], [03.05.2024, 08:54]

Ban, eu li tuas palavras a primeira vez e senti uma certa emoção na alma porque me vi absolutamente representada quando você diz das identidades feitas na migração e não no enraizamento, “dedão e calcanhar: duas setas”. O desejo foi de soltar aquele *orra beeem carioca, justo eu que sou fluminense. Na tua mensagem há um mapa que vai sendo desenhado nas e pelas miudezas, tal qual os trabalhos do bledo [Rodrigo]. Há muita poesia no gesto de olhar a paisagem e sacar dela um pedacinho qualquer em que se encontre um sentido, um verso, uma brincadeira, um afeto. Porque, afinal, é nesses miúdos que a gente se inventa, constrói laços e cria raízes (fixas e móveis). Mas também é nesse espaço-tempo que a gente é compelido a, violentamente, só olhar a paisagem e tentar se integrar na ilusão do todo, negando a parte. Aí fico pensando que as obras do bledo são também do gesto diminuto do cuidado e da cura, como quando a nossa mãe passava merthiolate no machucado. Uma mão leve fazendo uma pequena espátula roçar na ferida aberta, a ardência tomando conta e gesto mágico do sopro para aliviar a dor. Eu olho para as pinturinhas, as fotins, as palavritas, os versos e é como se essa brisa da boca de mãe soprasse no meu coração. E aí eu me conecto com a cadeira de vó de uma vó que nunca pude ter por perto, mas que mesmo assim eu a vislumbro balançando sob o sol da tarde, num cá e lá.

Deré [André Vargas], [06.5.2024, 15:56]

A cadeira que balança a vóinha e o povo todo a caminhar com os pés de bússula. de cá pra lá, de lá pra cá. Um balancê danado nesse conversê que a gente tá dando sequência desde o dia em que nos conhecemos. Nós quatro, andando feito bobos, conversando sobre tudo, de uma sala de exposição para outra quando éramos educadores do mesmo museu, fazendo o tempo passar mais amigo da gente, na burla clara de mais um dia de corpo em riste. É assim que eu sinto esse texto, uma sequência de uma conversa que começou no primeiro dia de trabalho e seguiu vida afora, amizade adentro. Rompendo os traumas da labuta pelo poder do papo furado feito água mole em pedra dura. 

Há, de fato, como o Ban(Jandir) bem disse, um nordeste forte e magnético puxando a seta da bússola do subúrbio, e do suburbano, sudestino ao seu destino mais promissor: ser caatinga, restinga e sertão. Mas há também uma ilha no existir de quem trilha a andança como forma de vida. Uma sensação estranha e estrangeira que permeia toda a  pertença que possamos experimentar em qualquer lugar em que nos aquietamos. É o que vejo nos trabalhos do Bledo(Rodrigo), um rebuliço entre um nordeste que puxa para seu seio e uma insularidade indissolúvel no olhar de quem o ama. 

Achar, por exemplo, na Ilha de Ferro a madeira e outras maneiras de resolver a vontade, além de achar as pedrinhas miudinhas que alumiam suas passagens, paragens e olhar – o tal miúdo essencial que pauta bastante dos processos do Bledo, como bem lembrou a Tiba(Silvana) – é mais um sinal de que as ilhas se revelam aos que, como ilhas, são capazes de se sentir. O olhar de ilha, como o do Bledo, é interessado no segredo e apruma as oiça pra ouvir a ladainha. Vê no que está fora tudo o que está dentro. A fachada como convite a entrar, o varal como um portal a atravessar e outros lugares onde seu olhar espera e espreita de fora a força interior, como uma ilha que, cercada de mar, sente a maré como quem respira.  

Dentro e fora; Interior e exterior; Lá e cá… são falsas dicotomias, uma vez que são resultados de um mesmo ponto de vista. Acredito que a ideia de sudeste e nordeste também assim o seja e, portanto, não é na diferença que reside a fronteira, mas no que há em comum entre essas duplas de sentidos: o segredo. E a única coisa que podemos saber de um segredo, sem que ele deixe de ser segredo, é que o segredo é palavra. E o segredo é palavra que precisa sempre ser inventada, reinventada, escrita, borrada e apagada sem dó para manter-se secreto, e Bledo, ciente de que este é um jogo de azar, joga os dados, costura frases, pinta e rasga fita crepe e manifesta como um convite para conversar sobre as rotinas mais simples e nada secretas, pois é na fachada que está o convite para entrar. 

Na rasura, no rascunho, na garatuja e no descartar, assim como no interior de si, no interior do só e no interior que é só o interior daqui. Jogando com as palavras, andando e conversando o mais simples para o tempo passar amigo, como nós quatro faziamos de uma sala de exposição a outra, Bledo é um artista e educador dos espaços onde habita, sensível a todo entorno que entorna em grandes ondas de suor e frescor, no mar dos desconfortos e confrontos da vida, uma ilha.