Carta ao Prêmio Jabuti: Stella

Niterói, 22 de junho de 2024

Oi.

Vocês já conhecem Stella do Patrocínio. Um livro atribuído à sua autoria foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2002. Foi na categoria Educação e Psicologia, e não na de Poesia Brasileira, onde a vemos consagrada. Digo que foi um livro atribuído, e não que ela mesma foi indicada, porque foi produzido ao largo de sua agência, muito depois de sua passagem. Vivendo entre internações compulsórias em hospitais psiquiátricos, Stella faleceu aos 51 anos na antiga Colônia Juliano Moreira, enterrada como indigente. Sem posses identificadas, números de documentos, sem familiares, foi trancafiada sob o jugo da doença mental e considerada ninguém no registro de sua morte. Mas como uma mulher que dormia em quartos coletivos, num amontoado de gente, cuja até as vestes eram marcadas com a alcunha da instituição que a aprisionava, tem um livro publicado e é um sólido nome entre poetas e literatos? 

O caminho até a publicação é longo, atravessa décadas. Mas interessa a esta carta seu ponto de partida: Stella teve sua voz gravada na década de oitenta, no contexto de oficinas de arte que aconteceram no núcleo em que esteve presa. Em quatro faixas de áudio divulgadas na íntegra só em 2022, percebem-se as falas posteriormente organizadas em forma de poesia no livro indicado ao Jabuti, mas também tudo que escapou à transcriação de quem converteu os sons em textos. Ruídos de fundo, testemunhos de como soava aquele manicômio, burburinhos, conversas paralelas, as vozes das interlocutoras de Stella, que não constam no texto final, como entrevistadoras, ou algo assim, mas que a notaram e quiseram gravá-la quando foram convidadas para dar aquelas aulas. E o que mais me mobilizou: perceber como Stella disse muitos nãos. 

“Eu já falei o que podia, num tenho mais voz” 

“Eu não sei mais”

“Esqueci”

“Você tá me comendo tanto pelos olhos, só pelos olhos pelas palavras, que eu fico sem força”

As recusas eram insistentes. Ora saídas sinuosas, ora confrontações diretas às perguntas que pediam para ela cantar, falar qualquer coisa, que a elogiavam para, em seguida, lhe extrair algo. Num dos trechos mais ostensivos, Stella fala: “Cê me pega sempre desprevenida, hein? Quando eu tô com vontade de falar tenho muito assunto, muito falatório, num encontro ninguém pra quem eu possa conversar. Quando não tenho uma voz mais, num tem um falatório, uma voz mais, vocês me aparecem e querem conversar conversar conversar conversar”. 

Penso que o silêncio de figuras públicas é estranho. Quando muito, sabemos do clamor contra certo famoso que não se pronunciou sobre um caso polêmico, no que fica evidente que sua relevância é feita, sobretudo, de palavras. Ainda que calar não entre no que consideramos ao eleger a importância de alguém, ressalvo: a quietude me parece de certo modo resguardada como um direito – convivemos com os hiatos de bandas famosas ou com estrelas fugindo de paparazzis. Mas não podemos conviver com o silêncio de Stella do Patrocínio, cuja vida pública foi praticamente desvinculada de sua vida orgânica. Não digo do silêncio obsequioso, imposto como castigo, ou da falta de ressonância dos que não são ouvidos. Falo daquele silêncio desejado, de quando queremos e podemos aquietar. De quando alguém se recolhe e reconhecemos, nisso, autocuidado e calma. Sei que não podemos conviver com o silêncio de Stella, uma das tantas espoliações que seu corpo sofreu ao longo da vida. Mas em suas recusas, audíveis nesses arquivos em .wav, pude vislumbrar sua pretensão à quietude numa importância tão grande quanto a de seu falatório.

Eu não sou tão envolvido com literatura. Minha relação com prêmios e assuntos literários é lateral, para ser generoso. Mas não pude deixar de pensar em Stella ao reabrir um dos meus livros de formação, importante à área que me vejo relacionado – às Artes Visuais –, e ver, nele, o sobrenome de um artista estrangeiro, em posição de importância. Omito seu primeiro nome de propósito, e do capítulo que carrega suas falas – de uma entrevista transcrita, com a devida presença transcrita de seus interlocutores – retirei tudo, numa edição que subtraiu e embranqueceu as páginas, com exceção do que até então era um sobrenome: Stella. 

O resultado me parece uma constelação. Estrelas e o silêncio do espaço sideral. Envio as páginas em que intervi junto a esta carta. Acredito que o Prêmio Jabuti, que a Câmara Brasileira do Livro, acabaram cumprindo um papel legitimador, instituidor da evidente força das palavras de Stella. Mas só ouvindo Stella pude entender algo que escapa ao que entendemos como importante à humanidade. Algo que segue no fôlego que tomamos entre uma palavra e outra, nos momentos em que calamos por desejo, em quando dizemos não. Envio esta carta, e as páginas que seguem, como quem diagnostica uma só força nos silêncios e nos falatórios. Das que foram vitimadas e das que não serão. E em Stella, que num dos poucos gestos de resistência que se tornaram públicos, me fez pensar que não só as palavras da humanidade merecem prêmios, mas também os silêncios (ou a busca por eles).