Documento deixado pelo vão de algumas portas
Trânsito apinhado, dia anoitecido, demoravam os ônibus. Era uma noite que me incomodava em tudo, quando uma ideia me tomou de assalto e me espantou: e se, um dia, eu sentisse saudade até mesmo do que eu mais desprezo neste mundo? Sei lá, eu devo ter olhado alguém pedindo dinheiro, pensado na fome e me indignado, ao passo que reconhecido que não conheço nada, nenhum outro mundo, nenhum outro lugar. Até firmar uma posição e te envolver, demorei umas semanas. Entre escrever, imprimir este documento, enfiar ele num envelope embaixo da sua porta, como se fosse uma renovação no contrato do seu aluguel… Mas peço, caso esteja de acordo, que não assine na linha abaixo. Ao invés disso, escreva nela a palavra saudade, com sua própria caligrafia. Com isso, quem sabe, cada traço vacilante das suas letras nos desterraria daqui, deixando-nos com a vontade de uma volta apressada. Como se, lá na frente, decidíssemos viajar no tempo, do fim do mundo pra hoje, para ver novamente a fome, o suor escorrendo da têmpora, a buzina dos carros, UTI’s sem funcionar, bares abertos, o debate eleitoral, a unha do dedão com sangue pisado, as pedras portuguesas, a pele lacerada, o chorume na rua, a lágrima nos olhos dos outros, o jeito como o corpo treme de frio, a faca cortando legumes, o velho caído na frente do shopping, a fina camada de cutícula antes da pincelada com esmalte, o óleo ungido, a bala perdida, uma camisa manchada de sangue, a pétala daquele crisântemo.
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