Tô um tempão olhando as telas. E nas telas só são 3 coisas: vídeo, áudio ou textos. Digo isso pra dizer que, daqui, sinto falta do cheiro, da temperatura, dessas paradas. Sinto falta do cheiro do capim daquele espacinho que eu costumava pisar pra ir e voltar da universidade. Sinto falta da chuva me pegando de surpresa, das poças de lama sujando minhas calças. Três meses que tenho me permitido estar isolado, em casa. E tenho percebido, agora, do que meu computador não tem dado conta. Engraçado eu ter acreditado, nem que por um momento, que ele poderia dar conta de alguma coisa. Vai ver é porque ele se propõem a mim como um ilusionista, representando meu mundo miniaturizado no seu ecrã.

Isso me faz pensar. Quando nós, humanos, falamos ao vivo, nossas informações são enviadas com sensações térmicas, ventos, suores, toques… O que o nosso corpo sente é um dado tão importante quanto o que ele escuta. E isso tudo compõem, ao final, a mensagem do que nos vem.

Já quando usamos sistemas informáticos, celulares, computadores, relembramos porque alguns chamaram nossa era como a da economia da informação. Tudo que circula nos navegadores e redes sociais é informação, e ali, caso se queira fazer sensações, ventos e calores presentes, elas e eles precisariam ser codificados para, só aí, serem – talvez! – assimilados pelas pessoas que recebessem os códigos cifrados. Num cenário como esse, é fácil perceber que só quem é mais bem aparelhado dentro da informática das máquinas, das letras, das imagens, dos áudios e vídeos, só essas pessoas estão aptas para, mais que entender, sentir frente à uma tela. É mais um capital que nem todos têm.

Por isso tenho cogitado a existência de homens e mulheres insensíveis à tela, sabe? Homens e mulheres que, ainda assim, usam e assistem a tela. Essas pessoas insensíveis, empobrecidas do capital sensório que só a informação transmite, avaliam o mundo virtual com o pouco que têm. Mas suas medidas, ocas, impossíveis de serem mensuradas por dentro de suas carapaças vazias, formam opinião em pé de igualdade com a opinião formada por aqueles com o mais sólido e inteiriço olhar capaz de sentir pela informação. A produção informática é tanta que os critérios dos que a fazem passeiam pela mesma definição que lancei acima: dos que leem, insensíveis, algumas telas. O embaraço é tamanho, perceba, que já não há porque falar somente em nome de pessoas insensíveis que recebem as letras, as imagens e os sons. Falo também de insensíveis que produzem as letras, sons, vídeos, imagens ou o que seja. Falo, talvez, das pessoas que são acusadas de serem robôs, floodando as redes sociais em defesa de fake news. Falo dos mais velhos, com um celular numa mão e a bíblia na outra. Falo da juventude, enxurrada por problemas que veem através de releituras meméticas, dum humor violento que corre timelines. Falo dos sabichões – mas olha só!: eles nada sabem sobre o que é vaporwave. Falo de mim.

Convenhamos: não há porque ficar falando de gente insensível: todo mundo é sensível em algum ponto. E nem de gente sensível! Frente a essas coisas, percebo inclusive em mim que temos muito duma pele carrancuda. É difícil sentir dessas telas.

Então vo mudar meu jeito de falar, tá?

 

 

 

(Mas antes:

É… então… Pensando nas conversas que eu tive recentemente com…. própria Silvana… é… e com outras pessoas também, sobre… é…. a falta que eu tenho sentido sobre… falta da oralidade, assim… já que tô ficando muito no digital. Falta de responder com a voz. De… vindo de um certo receio de desaprender a falar, eu optei por responder… esse e-mail com a voz. Mesmo.

Esse é o Robledo. É um amigo que, um dia, decidiu nos responder um e-mail coletivo sem palavras digitadas, só com um áudio anexado; gravação da sua própria voz, da qual extraio o trecho acima, seu primeiro dizer.)

Fwd: Desculpe pela demora é um projeto que buscou retomar trocas de e-mails interrompidas. Por meio de uma convocatória pública, recebi dezenas de mensagens — com dias, meses e até anos de atraso — cobrando respostas que nunca vieram ou se desculpando pelo próprio atraso. Ao longo de um mês atuei como um mediador entre remetentes e destinatários, promovendo uma espécie de anistia temporária para e-mails atrasados.

Atualmente, estima-se que 145 bilhões de e-mails sejam enviados diariamente em todo o mundo e que mais de 11 horas semanais sejam gastas por seus usuários para ler e responder essas mensagens. Mas essa escalada promovida pela tecnologia apenas nos faz recordar de uma verdade antiga: como qualquer tipo de transação econômica, também a comunicação configura-se como uma dívida. E um círculo vicioso, pois é ao mesmo tempo necessária e impagável.

É o que diz o escritor argentino Ricardo Piglia em seu romance Respiração Artificial, de 1980: “Não é o caso de confundir a correspondência com uma dívida bancária, embora de fato haja alguma ligação entre as duas: as cartas são como letras que se recebem e se devem. Sempre se fica com um pouco de remorso em relação a um amigo a quem se deve uma carta, e nem sempre a alegria de recebê-las compensa a obrigação de responde-las”.

Daniel Jablonski, 2017.

carta tem muito a ver com casa, né? cada dia mais tenho percebido isso

 

[…]

 

cassio, teve um dia que eu tava conversando com celio pelo google duo. tava falando com ele sobre meu gosto atual em mandar cartas. em como tem me feito estar feliz enviar cartas pra lugares, pessoas com quem até então ainda não tinha contato. e, conversa vai conversa vem, ele disse que nem todo mundo pode receber suas correspondências em casa. logo eu, que sempre precisei receber as cartas e correspondências suas e do seu irmão na minha casa, tive que ser relembrado disso de novo por ele, ha essa altura do meu encantamento pelo que vem e vai nos correios. quem vive em favelas não tem esse serviço disponível como nós que vivemos na rua. Para além das balas, da pobreza, dos deslizamentos de terra, das valas abertas, os envelopes não chegam tb, é óbvio.

Eu tava com ela em Búzios, e ela tinha mania de carta. Ela mandava muita carta, pra todo mundo, né? Carta, carta, carta. Aí eu disse: “Ana, vamo fazer um livro.” […] Então eu falei: “Ana, escreve uma carta longa aí, uma cartona, e a gente faz um livrinho chamado Correspondência Completa.” Não é a correspondência completa e é uma carta só, aqui dentro. […] aí foi tudo xerox aqui dentro. Cortado com a mão e grampeado. E […] ele começa na segunda edição, esse livro. Ele é todo mentiroso. Eu acho engraçado porque Ana Cristina se deliciava com o engano, enganar. Então ele não tem primeira edição. Eu me lembro tanto desse momento em que a gente botou a segunda edição. Ela disse: “Os bibliófilos vão ficar procurando a primeira edição, e não existe.” Então eu tô contando esse episódio porque eu acho que isso tem a ver com a estética dela, com a dicção dela. Ela realmente tinha isso. “Cadê a primeira edição?” Começou pela segunda. Quer dizer, é sempre um despistar. Ela bota atrás uma bibliografia dela falando de uma coisa que não existe. É o próximo, na gráfica, no prelo. Ou então é o livro anterior. Enfim, é um livro que não existe. Quer dizer, é de enlouquecer um cristão, que sai procurando. Gente que faz tese, coitada…

Heloisa Buarque de Hollanda sobre Correspondência Completa, publicado em 1979 por Ana Cristina Cesar.

 

(a correspondência, por exemplo, é por natureza uma escrita perdida)

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos: Arquivos Pessoais. v. 11. n. 21. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Janeiro-junho de 1998. p. 10.

 

Cássio Andrade me enviou hoje, às 1:52h:

Oi, estou lendo este eBook e gostaria de compartilhar esta citação com você.

“Desde a segunda das Considerações intempestivas, Nietzsche aponta o esquecimento como uma força plástica fundamental para a vida. É possível viver quase sem memória, ele diz, mas é impossível viver sem o esquecimento. Neste texto em que discute as vantagens e desvantagens da história para a vida, Nietzsche considera memória e, consequentemente, história coisas que devem ser tanto afirmadas quanto negadas. Em outras palavras, lembrar somente é importante se a capacidade de esquecer for mantida. Tanto o sentido histórico quanto sua negação são igualmente necessários para a saúde, tanto de um indivíduo quanto de uma civilização. Esta relação memória/esquecimento vai ser tratada de forma ainda mais elaborada em Genealogia da moral[51]. Ali, o problema vai ser pensado a partir de uma reflexão sobre a consciência. A consciência é apontada como possuindo duas faculdades, a memória e o esquecimento. Nietzsche utiliza a imagem do estômago, “o ‘espírito’ se assemelha mais que tudo a um estômago”[52], para se referir ao papel da consciência: ela “digere”, na medida em que assimila ou rejeita, selecionando, simplificando, reduzindo, processando. A capacidade de lembrar fixa as impressões, produzindo uma camada de sentido que funciona como um fundo ou um lugar de reconhecimento. A partir desse fundo as novas impressões que chegam não são sentidas, mas reconhecidas pelas marcas mnêmicas; o que termina por produzir uma repetição, uma “digestão” do já sentido. É a memória, portanto, que torna possível a promessa e, consequentemente, a responsabilidade e a culpa. Através da memória o ser humano fixa as leis e pode prometer. Isto significa que a memória, ao contrário do esquecimento, que é uma necessidade, uma força, uma forma de saúde, é um produto da cultura. “Como fazer no bicho-homem uma memória?”, pergunta Nietzsche, e, mais adiante, “grava-se algo a fogo, para que fique na memória: somente o que não cessa de causar dor fica na memória”[53].” (from “Nietzsche e a grande política da linguagem” by Viviane Mosé)

 

Hoje, quem faz um blog faz um túmulo.

Por isso chamo o meu de arquivo: a função dele não é mostrar, mas guardar o que faço. Portanto, usar o nome arquivo para nomeá-lo marca o momento em que se tornou claro para mim esse aspecto do meu site como uma gaveta. E tornar visível o que essa gaveta guarda não é responsabilidade dela, é óbvio. É minha. Deveria falar então sobre o que nos trouxe até aqui, e por onde essas coisas andaram, se andaram, até entrarem gaveta adentro.

(mas e se a gaveta falar sobre ela mesma?)

Responder e receber e-mails tem sido o que tenho feito. E não quero divulga-los, para proteger as conversas pessoais que ali correm. Aí há minha complicação em ter e-mails, cartas e mensagens como ação artística, ao mesmo tempo que como minha monografia: por vezes, o texto desta dissertação precisa estar escondido aos olhos do público, porque escrever para outras pessoas, sendo meu trabalho, me pede para cuidar das minhas relações com mais importância que o cuidado que dedico ao conhecimento universal, universitário.

Claro que há uma estranheza em chamar isso de trabalho de arte e trabalho universitário. Um amigo mesmo, conversando comigo, me fez notar que o que faço, dessa maneira não anunciada como prática artística, ocupa não tanto o lugar do que há de artístico no mundo, mas sim de qualquer outra coisa, e principalmente: da comunicação usual, da carta, do e-mail. Talvez eu deva assumir: me seduz essa possibilidade de algo feito com intenções artísticas ser visto como outra coisa, mais comum, e passível de ser respondida, não somente recebida, pelo mesmo canal que ela abre: dessas escritas que são enviadas por qualquer um, como as com um carteiro. Num segundo ponto, talvez eu chame como pesquisa e como arte algumas de minhas mensagens por estar aqui, mestrando e envolvido com a cena artística. Mas me envergonha a possibilidade de que pensem que situo mensagens em arte e pesquisa como forma de qualificar meus textos num patamar acima do ordinário. Sobre isso, eu gostaria de dizer que, justamente, é da busca pelo ordinário que colho os efeitos do que gosto de produzir. “E o que você produz?”. Eu respondo, mas pode soar um pouco patético esse ritornelo: eu escrevo umas cartas.

– pegar minha carteira e, por um milésimo de segundo, quase senti-la peluda e arfando na minha mão, como se tivesse viva. –