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O centro dessa operação está no modo como os sapatos adquiridos pelos ex-escravizados não foram, num primeiro momento, necessariamente calçados, como observa texto de Louis Albert Gaffre, narrado como introdução a uma sequência de imagens de homens negros com sapatos a tiracolo no vídeo Ao rés do chão: “o primeiro gesto da liberdade foi (…) aprisionar os pés nas fôrmas escolhidas – por consequência, mais ou menos adaptadas. Digo mais ou menos, mas a verdade da história me obriga a dizer muito menos do que mais, porque os bons pés dos bons negros, pouco acostumados a estar estreitados, protestaram com estardalhaço e foi o suficiente para que se visse o espetáculo mais inesperado como primeiro efeito da libertação. Negros e negras, em todas as cidades para as quais se dirigiam, passavam felizes e orgulhosos, com a postura altiva, descalços. Mas todos levando um par de sapatos – por vezes à mão, como um porta-joias valioso; por vezes a tiracolo, como as bolsas vacilantes da última moda mundana”.

por Clarissa Diniz, num texto crítico sobre a exposição Baixa dos sapateiros, de Tiago Sant’Ana.

Pelas políticas recentes para com os conteúdos adultos por parte do Tumblr, que é propriedade do Yahoo, e que é por sua vez de um conglomerado chamado Verizon, deixo a plataforma processofolio.tumblr.com. Verizon é grande: atua na distribuição da rede nos EUA, assim como nas discussões sobre neutralidade da internet e da criação ou não de nichos privados de rede para determinadas empresas. Com relação ao conteúdo adulto no Tumblr, a discussão é antiga, e já assumiu diversos matizes. Houve a época em que falaram em liberdade de expressão ao optarem por não deletar todo o conteúdo sexual, mas sim escondê-lo nas buscas no site. E agora há proibição e exclusão dessas postagens, passando por cima do histórico hospedado ali há anos, das comunidades que surgiram em torno da plataforma, fora o critério de gênero para definir a exclusão dos conteúdos, afetando militâncias, artistas… afetando mulheres, em suma. Há também a confusão do algoritmo da plataforma, que exclui como conteúdo adulto postagens que nada correspondem a isso, como fotos de dedos, ônibus e, como aconteceu comigo e que recentemente me dei conta, com uma foto de um pedaço de papelão enrolado num cobertor. Mas não é exatamente por essa foto que deixo o Tumblr.

Carrego ainda comigo a vontade de, cada vez mais, usar softwares e sites que somem por uma diversidade na rede. Códigos abertos, copyleft, usos que me lembrem meus antigos aplicativos peer to peer, que me abriram pela primeira vez a possibilidade de consumir conteúdo de forma livre, aberta e um pouco pirata, confesso. Os tempos mudaram; artistas conseguem arrecadar com visualizações de seu conteúdo no Youtube; as gravadoras se metamorfosearam em aplicativos de streaming musical. Quem sou eu para dizer que isso é ruim para todes? Sou um dos poucos conservadores nisso, eu sei. Mas o que me preocupa é que estejamos presxs às grandes corporações em suas flutuações, que resvalam no que consideram moralmente, ideologicamente. De uma hora para outra, podemos lidar com uma nova informação dizendo que a neutralidade da internet e o amplo acesso já não são mais importantes, que agora vamos precisar pagar, ou que os currais se fecham um pouco mais para quem sonha em uma internet que ensaie alguma autonomia das populações do globo.

Pois então migro para jandirjr.wordpress.com. Ainda tô ajeitando tudo nessa mudança. As caixas de papelão não foram todas abertas e esvaziadas. Mas meu conteúdo todo já foi repassado pra esse novo endereço. Obrigado, Tumblr, pelo caminho até aqui. Mas quem sabe eu não exclua definitivamente meu Facebook, conta que não uso há anos, que é um fato que deu origem a isso aqui de certa forma, de me guardar fora das redes sociais? E daí caminhe ainda mais confortável com deixar de existir em determinadas redes privadas, e me encontre em pequenas páginas soltas no mar imenso da internet, imenso ainda, enquanto existirmos expandindo ele, sendo suas águas? Enquanto isso, estive eu boiando num rio, numa queda d’água no meio da mata, fora da cidade, tecnologia que nos precede, fora de nosso intelecto, de nossa história. A natureza que somos e que nunca seremos. Erva daninha, Peixe comendo sua pele morta, cobra coral. Me lembrei duma internet que ainda é selvagem. Subirmos a trilha que já ela é.

(Retirei dos Anais do I Seminário de Práticas em Arte-Educação: perspectivas contemporâneas. Rio de Janeiro: UERJ, DECULT, 2018. A Silvana nem eu gostamos tanto do texto assim. Eu achei que ele defende a arte-educação para os artistas, quando eu pouco me importo com a opinião deles: as obras de arte servem a outro propósito quando a exposição vira espaço de educação emancipadora, e que se foda se eles ainda se preocupam se sua obra vai virar motivo de cantarmos “batatinha quando nasce…”. Nossa agenda, realmente, muitas vezes, é bem diferente da deles. Ainda assim, o texto localiza como a carreira de nosso atual diretor cultural é sustentada em premissas que prejudicam nossa profissão, e diz também, de modo curto e preciso, como nos impacta a saúde essa precariedade programada em nossos ambientes de trabalho. Sem mais, guardo aqui o texto:)

Arte ou Rodízio de pizza

Analu Cunha

Em 2008 publiquei um texto chamado “O que faço é arte” na revista Polêmica, uma revista online da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Quando escrevi, dialogava com questões que me assediavam na época: em primeiro lugar, o preconceito em relação à arte-educação. Bem, eu havia acabado de defender o mestrado e, saído do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) após grande desgaste físico e mental. Na mesma época, o atual curador do Museu de Arte do Rio (MAR), Evandro Salles, inaugurava uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) chamada “Arte para crianças”. Segundo ele, “a ideia de mediação implica na ideia de uma dificuldade, na impossibilidade de uma relação direta. E não há nenhuma impossibilidade de relação direta entre uma obra e um espectador. Não se pode partir do princípio de que uma pessoa não tem todo o potencial pra experimentar aquela obra, viver a experiência estética.” (a afirmação punha em questão grande parte de minha experiência no CCBB). É claro que eu, como artista, adoraria que não houvesse mediadores entre os espectadores e o meu trabalho. Mas a gente sabe como alguma ênfase em um dos aspectos do trabalho faz a diferença em sua apreciação: um pouco de branco ali, uma curva inesperada, uns cortes rápidos, o título que leva o trabalho pra outro lugar.

A epígrafe do Deleuze e Guattari que abria o texto é a seguinte: “Uma tela pode ser inteiramente preenchida, a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela; mas algo só é uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos.” Vou abrir aqui um parêntese sobre minha formação não incluída na minibio: participei de um grupo de estudos no final dos anos 80 que se chamava Visorama (eu, Maria Moreira, Ricardo Basbaum, João Modé, Marcia X, Rosangela Rennó, Eduardo Coimbra, Brigida Baltar, Carla Guagliardi, Valeska Soares etc.). Bem, nós nos reuníamos, líamos textos (poucos) e víamos muitos slides. A gente rachava ou os mais abonados compravam a Flash Art, a Art Forum e outras revistas internacionais de arte. Daí a gente fotografava e fazíamos sessões coletivas para ver e discutir os trabalhos. Esse fórum diante das imagens foi meu grande aprendizado em arte contemporânea. Existe coisa melhor? Ninguém tem razão e todo mundo tem a sua… Na maior parte das vezes não tínhamos lido o texto e víamos as imagens pela primeira vez, tinha um frescor ali, era divertidíssimo. Fazíamos perguntas e comentários totalmente espontâneos.

Quando cheguei no CCBB, o Visorama era minha referência de partilha coletiva diante das obras que eu conhecia. E é essa experiência que procuro reproduzir em minhas aulas até hoje. Voltando ao Deleuze/Guattari, usufruíamos largamente dos vazios da obra.

No texto de 2008, me dedico a demonstrar como a obra de arte já nasce mediada: seja pelas condições em que foi concebida, transportada e exibida, seja pelas camadas de texto de curador/instituição/crítico (e, atualizando, postagens em mídias sociais), seja pela disposição museológica, seja pela mediação no espaço expositivo.

Mas onde está o vazio, ou o abismo, ou a vertigem diante da imagem depois de tanta mediação? Por onde encontro passagem para meus cavalos em cenário já tão instrumentalizado?

No resumo eu advertia o leitor:

“Este artigo é uma primeira reflexão sobre minhas experiências, na qualidade de artista plástica, com arte-educação. E, como tal, não se pretende definitivo nem categórico, antes esforça-se por estimular novas e sempre bem-vindas discussões sobre o complexo relacionamento entre a arte contemporânea e a arte-educação em instituições de arte.

Vamos a ele:

Quando, já artista plástica, e em momento economicamente frágil, aceitei trabalhar com arte-educação, me perguntaram se eu sabia do preconceito direcionado a esses profissionais. Verificando em meus arquivos pessoais, rapidamente lembrei-me da hierarquia (numérica e moral) nos cursos da Escola de Belas Artes dos anos 1980. No topo, Desenho Industrial e Comunicação Visual (meu bacharelado). Os outros cursos, Pintura, Gravura, Escultura, Cenografia etc. desciam a curva do status acadêmico que tinha como base… Educação Artística. Além de requisitar poucos pontos no vestibular, entrevia no curso, em meu ponto de vista adolescente, um ar de Escola Normal – que, por extensão, estava associada a professorinhas primárias e a uma postura feminina pouco arrojada. Mas não era disso que tratava o convite, pensei! O trabalho era em uma instituição de arte, em contato direto com as obras. Para ilustrar seu argumento, meu interlocutor citou um artista brasileiro conceituado, que lhe afirmara que arte-educação era o último degrau das atividades ligadas à arte. Topei assim mesmo. Precisava de trabalho1 e como não nutria relações empáticas com o tal artista, não lhe daria poderes de gerir a subsistência de minha família. A história mostraria seu erro!

Nesse primeiro contato com arte-educação já apareceram os dois principais problemas relacionados à sua prática. O primeiro deles, e creio que originando todos os outros, sua própria designação. Além do que me parece ser um constrangimento histórico associar arte e educação2 via hífen, as duas palavras reúnem uma série de atividades com finalidades diversas – recreativas, educativas e, as que aqui defendo, artísticas. Não possuo, contudo, sugestões para um termo específico que reúna as expectativas que projeto nesta última e, apesar de simpatizar relativamente com a palavra mediação, não me agrada sua sonoridade. Contudo, mediador será o termo que utilizarei para o profissional de… mediação neste texto. O segundo problema se configura na patente desconfiança dos demais profissionais ligados à arte – artistas, curadores, museólogos, críticos – com essa estranha, desconhecida e recente necessidade das instituições de arte.

Qual seria a origem do preconceito com arte-educação? A educadora Ana Mae Barbosa3 localiza nos primeiros anos da nossa República (1889), o pé atrás com o ensino de arte no Brasil. A Família Real portuguesa trouxera a missão francesa (1816), e fundara a Academia Imperial de Belas-Artes4, simbolicamente vinculada à ela. Era natural que a República implicasse com os anseios depositados na arte pelos ideias neoclássicos, que relacionavam a arte, a educação e, por extensão, a cidadania: “todas as artes têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo agradar e instruir5”, esclarecia o historiador da arte alemão Johann Joachim Winckelmann (1717 – 1768). Com a República, saiu a Academia de Belas Artes e entrou a faculdade de Direito como carro-chefe da educação brasileira.

Soma-se a isso agravantes tupiniquins, como a em parte herdada aversão ao trabalho manual e à expressão de origem portuguesa “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”, que resume, nas entrelinhas de nossa brasilidade, o status do professor6. Acrescento ainda o consenso, em nossa sociedade, da educação como (honrosa!) atribuição feminina7 e, portanto, acanhada frente ao mercado de trabalho. Leitura, aliás, encontrada em minha primeira avaliação sobre arte-educação, logo acima…

Esses são argumentos que, no entanto, não justificam o grau de aversão que percebo entre colegas artistas a um trabalho de mediação em museus e galerias, sobretudo quando aplicado a nossa própria obra. De fato, fico aterrorizada em pensar um trabalho meu sendo apresentado no estilo menino do cajueiro, ou na coreografia batatinha quando nasce…8

Penso compartilhar com meus colegas as observações de Huang Pin-hung (1865-1955), o artista chinês citado acima por Deleuze e Guattari: uma obra precisa de vazios que deixem passar cavalos. Creio que o real pavor do artista resida aí, que os vazios que criou sejam preenchidos pelos cavalos da mediação. Ou, pior, que ela (mediação) abra vazios exclusivos para seus próprios cavalos. Ora, uma obra de arte, por mais que a concebamos por motivações que supomos privadas, só se realiza como objeto artístico quando exibida, publicada. Ela já nasce para o outro e, para chegar a esse outro, nos valemos dos talentos de Hermes – “o deus veloz que reina sobre o espaço do viajante9”, senhor de todos os elos, de todos os códigos e das senhas de passe – a entidade mediadora por excelência. Todo bom artista é um grande sedutor, e sabe lançar mão do repertório da divindade para estabelecer contatos, além dos legíveis, os visíveis e os invisíveis.

O pintor francês Nicolas Poussin (1594-1665) afirmava – ao escrever uma carta com instruções a um cliente de como sua tela deveria ser exibida -, que “se contemplar o quadro é deleitar-se com ele (…), ler a carta e o nome do quadro é ter a mais o benefício de um estímulo de prazer pelo texto10”. O crítico e historiador Louis Marin analisa os recursos não pictóricos do pintor em sua carta, que, entre outras coisas, detalha como deve ser escolhida a moldura do quadro. Para Marin, a moldura se torna necessária quando o olhar do espectador substitui o olhar do pintor. Em arte contemporânea, que molduras usamos quando o trabalho não é mais acariciado exclusivamente por nossos olhos? Que dispositivos não “pictóricos” o artista pode se utilizar hoje para aproximar o espectador de seu trabalho – e assegurar que o olhar do outro se afine – ou não – minimamente ao seu? Não basta mais pensar a moldura, o título, o melhor espaço, o suporte perfeito: outras narrativas entram nessa estratégia: a curadoria, o conceito da exposição, a ideologia da instituição onde ocorre a mostra, a museologia, a cenografia, os artistas escolhidos e sua combinação dentro do espaço, a crítica e, last, but not least, o trabalho de mediação. Se Poussin produzisse no século 21, sua carta ao cliente certamente teria alguns volumes. Poderíamos afirmar, como o pintor no século 17, que os dispositivos contemporâneos de mediação são um benefício a mais, um “estímulo de prazer”? Feliz ou infelizmente, não controlamosmais, como acreditava Poussin, esses dispositivos, mas precisamos levá-los em conta. Longe de seu criador, quem administrará a vida pública da obra e, simultaneamente, resguardará sua privacidade?

Temos um cotidiano continuamente devassado, em que o termo privacidade faz cada vez menos sentido. O que poderíamos ainda controlar, preservar? Com a identidade espalhada em câmeras de vigilância pela cidade11, inevitavelmente projetamos na arte a unidade perdida e, nela, requisitamos sua integridade mágica. Diante de uma obra sinto-me abrigada, reconstituída, com os pedacinhos colados e com meu mundo controlado. Diante de uma obra sinto-me fragmentada, destituída, com os pedacinhos espalhados e com meu mundo despedaçado: subitamente, faço sentido; subitamente, o mundo faz sentido. Um trabalho de arte, em seus vazios necessários, tem algo de privado, de opaco, de indevassável, de refratário a outras narrativas. É o que, no fundo, acreditamos quando recusamos a interferência de dispositivos.

Por que é nesse núcleo protegido, em uma secreta alma da obra, que tememos a atividade dos médicos legistas (museólogos, críticos, mediadores etc.).”De que modo um quadro tem acesso a seu nome?” perguntava-se Paul Klee12, ecoando em nossos receios mais modernos. A despeito de toda a verborragia que cerca os trabalhos de arte hoje, creio que devemos respirar fundo e, simplesmente, aprender a lidar com as novas camadas da arte contemporânea. Sempre com a desconfiança que nos é própria, é claro.

Dito isto, um bom trabalho de mediação é aquele que dá ferramentas para que o espectador, sozinho, descubra seus próprios vazios na obra. E que por eles passe seus cavalos, suas raposas, suas baratas, por que não? Nesses termos, não faz o menor sentido o uso do termo arte-educação. Arte não é meio objetivo para se chegar a nada além dela mesma. Em que Hermes pode nos ajudar? Certamente não no trajeto em direção ao núcleo da obra, por que, a essa altura, o núcleo não passa de mais uma camada dela, que pode não ser a primeira. Mas que, fundamentalmente, o deus dos viajantes auxilie em novos vazios para outras conexões, além das controladas pelos dispositivos anteriores. Que, mais que uma direção, ele nos ofereça uma desorientação inicial13 e que, a partir desse caos, cada um de nós possa preencher os vazios que quisermos – ou os que pudermos.

Acredito que, como partilha de códigos, uma obra de arte, e por extensão um trabalho de mediação, hoje operam com certezas – no registro que Paulo Freire entende como educação bancária – ,mas com as instabilidades das relações contemporâneas e, principalmente, com aquelas enfaticamente fluidas que estabelecemos entre nós, a sós, em público e/ou diante de um trabalho de arte.

Continua…”

Bem, o texto de 2007 acaba com uma promessa. Nela pretendia dar continuidade ao assunto abordando o preconceito inverso: o de “arte-educadores” com artistas (sim, isso existe), mas nunca o fiz.

Bem, até agora falamos de arte. E o rodízio de pizza? O final edificante deste texto só foi possível porque não abordei o motivo pelo qual saí do CCBB: a crescente e irreversível presença da contrapartida em projetos culturais. Isso significa números. Quanto mais, melhor. Atender um grupo de vinte pessoas de manhã e outro à tarde e ocupar o restante do tempo com pesquisas, discussões e criação de atividades não era mais possível em 2007. Pelas manhãs, nossos nomes eram escritos no quadro com um espaço ao lado para ser preenchido pelo número de pessoas atendidas. Vi uma estagiária chorando: às 14h estava zerada. Socorro, eu estava fora! Por conta do grande numero de pessoas, as atividades deixaram de ser de troca diante das obras, para virarem esquetes e showzinhos. Daí não havia mais vazios, só empanturramento. A pizza já vinha com ketchup, mostarda e borda de catupiry. É era pra comer rápido, que a de chocolate e morango com borda de nutella já estava chegando à mesa.

 

1 Os artistas que, como eu, necessitavam de uma fonte de renda adicional sabem o privilégio que é trabalhar com arte para pagar as contas. Grande parte dos artistas trabalha no ramo da arquitetura, do design e no magistério. Temos, contudo, vários exemplos no serviço público, no comércio, na cenografia, no carnaval, em cursos de línguas, na produção de eventos etc.

2 Refiro-me aqui não ao ensino da arte como disciplina (necessário, afinal), mas ao uso generalizado da arte como ferramenta para o “ensino” de áreas do conhecimento tão diversas quanto física, história, matemática, geografia ou mesmo cidadania. Desde sempre – com mais ênfase após o iluminismo -, a arte esteve direta e problematicamente relacionada à educação do cidadão, seja como prática exemplar (terreno sobre o qual construí esse texto), seja como oásis contemplativo, seja como incômodo social etc. A crítica aqui se refere à arte como ferramenta pedagógica.

3 BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. Perspectiva. São Paulo, 2001.

4 Fundada por D. João também em 1816, com o nome de Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios.

5 WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a arte antiga. P.69 apud PIMENTEL DE CASTRO, Isis. Arte & história: a concepção de arte nos oitocentos e a sua relação com a cultura histórica.

6 E, consequentemente, suas implicações salariais.

7 Entendida como extensão da materialidade e visível em seu ícone máximo: Sant’Ana mestra.

8 O primeiro método é muito confundido com arte-educação – geralmente por pessoas que chamam os mediadores de “guias”, e o segundo por quem associa a observação de uma obra a uma infantilização do público – e da obra.

9 O mensageiro, como Exu e os anjos católicos… Trecho encontrado em VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos, p. 155. Curioso que na Grécia antiga Hermes apareça representado ao lado de Héstia, a lareira, a deusa do espaço doméstico. Nesse registro, vale uma observação sobre o caráter duplamente feminino / masculino e público / privado de ambas as atividades, Arte e arte-educação.

10 MARIN, Louis. Sublime Poussin. São Paulo: Edusp, 2000, p. 23.

11 Para Deleuze, vivemos em uma sociedade onde “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado”. Não há saída. A obra, nesse meu raciocinio, seria a luz, não a saída no fim do túnel. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.219-226

12 KLEE, Paul. Das Bildenerische denken, Basiléia-Sttugart, 1970 in MARIN, Louis. Sublime Poussin. São Paulo: Edusp, 2000, p. 22

13 Na mesma linha de pensamento, Guilherme Vergara brilhantemente criou, em oposição ao termo “visita guiada”, a prática da “visita desorientada”.

De: jandir.jr@museudeartedorio.org.br

9:20h

Assunto: Descanso.

Declaro perante os presentes que não serei proativo. Que não foi o meu desejo quem assinou minha carteira de trabalho. Foi meu pulso, minha mão. É meu corpo quem age ao trabalhar, sempre foi assim. Um corpo oco de sentido, orientado pela sinhá. De um homem preguiçoso, escravizado, tadinho, mas preguiçoso. Acusável sempre. Terá mérito? Terá maturidade? Uma criança menino, italiano, trabalhando, os pés sangrando na fábrica. Infância é coisa nova. Nunca foram infantis. As chaves travando engrenagens. Sabotagens, colaborador que para – vê? Eu não sei ser proativo. Só o instagram para fazer o desejo trabalhar, e o preço que se paga: o de, um dia, não querermos mais você, instagram. Só nossa vontade como contrato de trabalho quando a proatividade é essencial. Eu não quero ser proativo. Coagido sei ser. Não os dois ao mesmo tempo. Ter medo das câmeras. Medo das assinaturas. Medo de classe. Grilhões nos pés. Banzo e pobres não são o mesmo, mas juntamos aqui. Precarizando dor. Shoá coube numas carteiras assinadas. Um peso estrutural cabe aos subservientes. O patrão não sabe resolver a merda feita. O colonizador deus pior Dois pontos. Ainda precisamos que alguém resolva isso para nós, limpem nossas bundas, requentem o feijão, eles dizem. Dólas nas mãos. Nada nas nossas. Estamos chegando lá, mais um pouco… só mais um pouco de postura, desejo, autocrítica, de um sorriso, sobretudo das ideias que eles nunca poderão ter, porque precisam da ajuda de deus, não das nossas. E somos mais inocentes que eles. Não fazemos ideia. É por isso… eu nunca serei eles. Eu não serei ser proativo. Não rio de dezembro. 14 de dezembro, dois mil e dezoito, Junior. Não.

Esta introdução foi adaptada a partir de uma das entradas de meu arquivo, do dia 27 de setembro de 2018, na qual consta o texto que utilizei para concorrer em um concurso para um mestrado em artes visuais. O motivo dessa alteração são as necessidades formais que a especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo, junto ao CCE PUC-Rio, exigem aos trabalhos de conclusão. O que corrobora em muito essas poucas linhas aqui, que me servem como uma introdução claudicante pro que farei em meus próximos passos como pesquisador mestrando, ainda que em artes visuais. O título do projeto que originou este texto é A forma da pesquisa. Se quiser, leia assim ao ler Introdução. Bem vinde.

Introdução

Um trabalho de conclusão de curso, numa especialização, feito por mim. O escreveria pensando em artistas ocupando graduações, mestrados, linhas de doutorado, se deparando com certas regras, empecilhos às muitas expressões. Pois, reconhecidas algumas distâncias improdutivas entre práticas artísticas e acadêmicas, viu-se pessoas adequando-se, assumindo binômios como artistas-pesquisadores, ou forçando os códigos, suportando alguma sabatina das bancas, de quem lhes orientava e, num sentido inverso, dos circuitos que crescentemente desconfiam de alpinistas da intelectualidade, das elites, dos sábios.

Esta monografia então desejaria como mais um sôfrego fôlego aos escritos que forçaram os códigos. Como eu mesmo escrevi um trabalho de conclusão de curso à época da graduação pelo qual precisei defender e suportar desconfiança, cheguei a vontade de, partindo do que eu mesmo fiz, anotar algo sobre este assunto. E claro, sempre defendemos nossas monografias. Cabe, todavia, assumir que nem todas as pessoas defendem a forma de suas pesquisas. Do conteúdo já sabemos de antemão a fragilidade. De quem o escreve, sabemos a dor desde quem suicidou por conta das pressões universitárias. Cabe falarmos do continente; das pontuações, usos gramaticais e espaçamentos pelos quais monografias mataram nelas mesmas a autoridade do discurso universal, perante um júri das formas.

Também daria início a este trabalho desejando que ele fosse meu último; que fosse uma espécie de destruição de mim mesmo, de toda vontade de pesquisa, já que imagino ele, mesmo sem o escrever, como onde residiriam os rastros de minhas tentativas falhas como um pesquisador. Penso-o como testemunho do porquê era falho tudo o que empreendi nos momentos conclusivos da minha curta vida acadêmica – o que o faria, portanto, como o monge vietnamita Thích Quảng Ðức quando se imolou em chamas nas ruas de Saigon, em 1963, e foi iconicamente registrado por um fotógrafo chamado Malcolm Browne. Mas é esta monografia que eu assumo numa auto-imolação; a mim mesmo caberia uma resignação cômoda: me vejo sem o vigor que um monge desses teve e que meu trabalho ousaria ter. Sim, sou eu quem o escreveria. Mas ele mesmo testemunharia contra sua própria existência, contra sua força enciclopédica. A mim caberia a calma da distância, do testemunho de um último trabalho que escreveria numa universidade, e um longo caminho pela frente, aquém de toda a academia.

A verdade, contudo, é que eu não garantiria minha vontade em deixar de seguir. Não posso dizer convicto “nunca mais” porque, difícil que foi chegar até aqui, não me escapa pensar no que é comigo ao desejar o pós-graduação. Todos os erros de português condenados por aqueles professores negligentes para com a posição socioeconômica de seu alunado são meus. Estudei em escolas públicas, subúrbios, zona norte, vivi e vivo numa família de baixa renda, trago uma família negra do Rio Grande do Norte comigo, dois estrangeiros que se apaixonaram, empobrecidos, e sobreviveram nessa cidade são meus avós. As formas das pesquisas, na emergência das ações afirmativas, carregam marcas de estilo que transcendem qualquer elaboração quasimoderna, quasivanguardista. Gostaria de falar sobre isso também. E na tentativa de sua escrita, tentarei aqui.

Mas não sem antes apresentar meu trabalho de conclusão na Graduação em Artes Visuais com Ênfase em Escultura, que cursei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Devo falar que era em 2016 quando vi o tempo de escrever uma monografia se aproximar. Já conversava com a professora Beatriz Pimenta Velloso, de quem me fiz orientando, sobre escrever, e ela recomendava que eu olhasse mais detidamente o meu conjunto de trabalhos em arte, onde inclusive vislumbrava ela tautologia em meus métodos, como um norte possível para meu recorte. Mas eu mesmo desconfiava de todo critério: tudo o que tinha feito parecia tão pouco e tanto perante a ânsia das palavras-chave que segui-las se fazia uma tarefa dolorosa.

Essa desconfiança era espraiada em toda minha postura: na mesma medida em que galgava novos e maiores lugares expositivos para um jovem artista formando como eu, me via mais desconfiado, e mais esnobava toda possibilidade de carreira. Conhecia mais pessoas, mais aumentava minha rede de trabalho, mas ia deixando pouco a pouco tudo para trás. E fui aos poucos desistindo de submeter inscrições em editais, reconhecendo minha falta de paciência com como as pessoas privilegiadas ao meu redor pensavam, abandonando meus trabalhos em espaços públicos, em lixeiras, os esquecendo por aí.

E comecei a fazer um portfólio fraturando sua linguagem usual. Numa pesquisa de meses a fundo, dei início a um só documento que organizava todos os resíduos materiais que eu pude considerar de gestos meus. Eram vitais; começava com minha certidão de nascimento, de 1989, e seguia.

desenhos que realizei quando criança, minha assinatura em 1997, uma carta que recebi do programa Daniel Azulay em 1999 por enviar um desenho ao seu endereço, as primeiras fotografias que realizei, em 1998, durante uma excursão com minha turma da Escola Municipal João Marques dos Reis ao Jardim Botânico, pinturas e desenhos que realizei no software paint em 2006 e 2007, uma série de imagens que criei com o primeiro scanner que comprei em 2009, desenhos realizados, durante meus expedientes de trabalho, com caneta esferográfica e grafite sobre papéis provenientes das bobinas das impressoras fiscais que eu consertei de 2008 até 2010, ano em que pedi demissão e comecei minha relação com o ensino superior em artes, pinturas ruins, fotos das bandas em que toquei, trabalhos de arte e outros gestos dos quais me orgulhei

O terminei, em 2015, prometendo em sua última página que não faria mais um outro portfólio. Foi o momento que coincidiu com quando criei o que chamei à época de processofólio. Tendo desistido dos portfólios, das carreiras, dos trabalhos, tendo abandonado o Facebook e Whatsapp, ilhado em mim mesmo, sem algoritmo algum daqueles que determinam nosso relacionar nas redes sociais hegemônicas, queria pôr fim também ao modo usual de organizar a memória do que fiz, ainda que conservando um pequeno fio que unisse essas informações arquivadas ao campo das artes visuais. Das notas de rodapé de meu primeiro trabalho de conclusão de curso, o seguinte trecho:

No dicionário Aurélio, encontramos a expressão “porta-fólio” que significa pasta de cartão usada para guardar papéis, desenhos, estampas. O sentido que damos ao portfólio é similar. Trata-se do registro da trajetória de aprendizagem do aluno. O termo portfólio nos remete a GARDNER (1995), que o define como local para armazenar todos os passos percorridos pelos estudantes ao longo de sua particular trajetória de aprendizagem. O autor explica que a palavra não é suficiente para expressar a extensão do conceito, acreditando que “processo-fólio” seria mais adequado. (PERNIGOTTI et al., 2000)

Portfólio e processofólio, quase sinônimos no campo da educação, me pareceram termos passíveis de assumirem papéis diferentes quando em arte. Portfólio é palavra corrente no universo artístico, e já fala por isso de volumes encadernados, páginas alvas com poucas imagens, pouco texto, tecendo uma linha narrativa provisória sobre um só artista em suas folhas. Enviada por correios e e-mails, atende as demandas por profissionalismo na apresentação das práticas sensíveis que alguns têm aprendido a chamar por produção. Processofólio, por isso, inaugura um sentido não novo para o que vemos num portfólio desses, mas dormente, entranhado em suas letras. Pois entendi o inerente ao ato de documentar-me ao usar esse nome: a dimensão processual de mim posta em meus arquivos. E daí foi fácil realizar esse documento de apresentação de meus trabalhos de forma diferente. Uma linguagem diarística foi tomando lugar à precisão seca das legendas usuais; a ausência de imagens de registro não mais configurou um defeito de documentação; os lapsos na minha memória, reelaborados pela autoficção, deixaram de ser falhas. Tomando consciência que o esforço documental pode ser labor do artista, reconfigurei as lembranças do que eu inventava, aquém da colaboração com curadorias, instituições, incisões historiográficas de agentes maiores que eu. A face de um arquivo assumidamente pequeno ia então tomando protagonismo em meus esforços.

E de modo que os limites se borravam, vi a ideia de trabalhos separados ruindo pouco a pouco ali. Já não mais documentava uma e outra coisa que havia feito, mas via uma crescente arquivação das hesitações do meu fazer, dos projetos, dos esboços, das ideias inacabadas. Via a resolução de trabalhos finais, de obras de arte, cederem espaço à indeterminação, em anotações sobre o medo de ser incoerente, sobre desistir de algo, por aí. E nisso, minha própria edificação como autor, como edifício sólido donde se erige um corpo de criação, vacilava e caía por vezes; às certezas projetuais sobrepujava-se uma ode ao fracasso como outra beleza possível; a própria centralidade na arte como assunto ali perdia razão. Nesse contexto, a pesquisa acadêmica em artes confortavelmente apartada da prática artística cedeu lugar em meus interesses. Foi daí que comecei a criar meu primeiro trabalho de conclusão de curso.

Lhe intitulei como Notas de rodapé dos textos publicados no site http://processofolio.tumblr.com/ Acesso em: 10 jan. 2016. Nele constava uma pequena introdução de três páginas e, logo após, uma longa sequência de páginas quase em branco. Ocupadas com notas de rodapé ora mais longas – até quase a metade da página -, ora curtas – em uma linha -, possuíam grandes espaços vazios suas folhas. Essa sequência era interrompida somente pela bibliografia utilizada, ao final do trabalho; extensa demais para tão poucas palavras. É que essas notas de rodapé e suas referências, como o título já indicava de modo seco e descritivo, eram referentes a entradas dessa minha documentação, quando eu ainda a chamava de processofólio, não de arquivo.

Reconheço que já ali, entre 2015 e 2016, redigia essa monografia com uma posição pessoal: a de que meu arquivo era uma pesquisa em arte, ainda que fora de forma, já que me permiti formulá-la num novo formato, pensando em pesquisar, de modo autônomo, a mim mesmo no que fazia. Entendia que elaborava e discutia a prática da pesquisa em arte não só como um conteúdo, mas em sua plástica. Isso se fazia claro pela própria argumentação de que me utilizei à época na apresentação de meu trabalho de conclusão:

O que proponho com estes problemas que trago à banca examinadora e para outros possíveis leitores é a construção de uma pesquisa que, habitando lugares distintos – internet e monografia -, coexista. Apesar da descontinuidade entre estes dois registros, afirmo com tal dependência entre escrito e site  que eles compõem juntos um texto coeso, o que atribui a este documento, pela solução que aqui emprego para vinculá-lo ao site, qualidade artística, que, por conseguinte, atribui ao http://processofolio.tumblr.com qualidade dissertativa. (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 7)

Atribuir ao documento que eu criava caráter de obra de arte era a única forma que encontrei de deixar anotado meus motivos em elaborá-lo daquela maneira. Por reconhecer que era artista ao pesquisar, justificava daquela maneira a subversão da forma da pesquisa, numa elaboração plástica da monografia. Mas o nó, a complicação, se dava não somente naqueles poucos papéis encadernados. Ao arquivo, até então processofólio, uma nova camada se sobrepunha pelo impresso:

E, mesmo tendo destacado acima meu Trabalho de Conclusão de Curso enquanto trabalho artístico, se faz necessário rememorar que todo este, em seus dois lugares: site http://processofolio.tumblr.com e impresso nessas páginas, assim como em seu caráter artístico, é a inscrição de um processo de pesquisa e escrita expandida; um Trabalho de Conclusão de Curso que continua a ser escrito. Na medida em que http://processofolio.tumblr.com está em processo, suas notas de rodapé ganharão novo e outro caráter documental com as mudanças do site. Um documento como este atualiza o interesse em seu conteúdo quando confrontado com o desenvolvimento de seu referencial. (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 9)

Houveram problemas de recepção do tcc por parte de minha orientadora. Mas a monografia foi amplamente elogiada em minha defesa final. Foi aprovada com nota máxima, ainda que com percalços, dúvidas em relação à potência de sua continuidade – se eu conseguiria fazer dela uma dissertação, uma tese, uma carreira. Beatriz, minha orientadora, pontuava suas preocupações com o trabalho quase como preocupações comigo mesmo. E havia algum rejubilo em mim ao ouvir aquilo: era como se eu tivesse ultrapassado uma fronteira até então desconhecida entre pesquisa e autobiografia. O que se justifica pela última citação que fiz, anterior ao parágrafo acima. Meu arquivo, se é um trabalho de conclusão sendo escrito até hoje, tem seu caráter como pesquisa acadêmica, ainda que autoproclamado. Mas, pela aprovação da defesa de suas notas de rodapé, carrega alguma validação institucional consigo nessa proclamação. Cruzam-se então em meu arquivo o método de pesquisa e as demandas do autobiográfico, da autoproclamação; acidentes do dia a dia que modificam os textos de si ao sabor do presente de sua própria escritura.

Por isso não escrevo uma pesquisa somente ao ambicionar realizar um trabalho sobre a pesquisa em artes visuais. Um tcc já escrevo ao escrever desde tanto tempo um arquivo. Por isso também não escreverei um último trabalho; por meu arquivo ter sido irreversivelmente ligado à pesquisa acadêmica em arte, já não faz sentido buscar escapar das universidades. Poderia escapar de ser seu corpo discente ou docente, mas não de minha relação fundamental com a pesquisa como uma constituinte do que faço. No entre que é a prática artística e sua documentação quando eu escrevo sobre mim mesmo, o caráter acadêmico, inevitável, se vê reformando-se, ainda que pelas bordas, pelas ações periféricas de um tcc que ousa se escrever indeterminadamente. Tendo dito isso, posso falar sobre o que eu gostaria de dizer, já que agora reconheço que ela, hipótese lançada aqui, e mesmo aqui, são parte desse mesmo arquivo, desse mesmo tcc.

Gostaria de falar sobre as vezes em que escrevi errado na academia. Correlacionar a isso escritos sobre a realidade colonial de nossa relação idiomática (KILOMBA, 2016), de escritas desviantes, em Pretuguês (GONZALEZ, 1984), chicanas (ANZALDUÁ, 2009), informadas pelos abalos do queer na linguagem inclusiva (BENETTI, 2013). Já que sei o que assola a intelectualidade de pessoas negras (HOOKS, 2017), por reconhecer em mim essa coletividade racial, cabe aqui reconhecer que até meus próprios desvios linguísticos, involuntários em boa parte das vezes, descentrados de minha consciência como autor, subvertem formalmente a estrutura idiomática hegemônica – e, por consequência, qualquer redação acadêmica que eu faça.

Gostaria de falar sobre os trabalhos que me influenciaram a realizar meu primeiro trabalho de conclusão de curso: a dissertação de Fabio Morais (MORAIS, 2013), a monografia do Igor Vigor (VIDOR, 2010) e da Maíra Dietrich (DIETRICH, 2011). Sobre cada um deles, os sintomas problemáticos sobre separar prática e pesquisa quando em arte (REY, 1996), no que suas soluções informaram minhas soluções à época da graduação. Sobre o tcc da Maíra, correlaciona-lo com os esquecimentos de Montaigne ao escrever seus ensaios (MONTAIGNE, 1972) e com um trecho de Molloy (BECKETT, 2014), que, ao descrever uma pesquisa incuriosa, suponho servir como parâmetro a quem pesquise em arte, recorrentemente acusável pelo rigor ou falta dele em seus métodos.

Gostaria de falar sobre a discussão do rigor na pesquisa em arte, dos debates sobre a relação conflituosa entre a pesquisa em arte e a universidade, com os exemplos dos debates suscitados nos expedientes da revista Trópico e do livro Meio como ponto zero – metodologia da pesquisa em artes (BRITES, TESLER, 2002). Na pesquisa em arte, o método é que é posto à prova por quem a critica, como se não seguisse a investigação com devoção – comprometida que é com a prática artística -; como se não fosse curiosa o suficiente. Queria falar sobre preguiça então, pensando com o crelazer (OITICICA, 1969) e com Emil Cioran e suas reflexões sobre trabalho e preguiça (CIORAN, 2012);

Quem sabe, falar da dissertação do Gustavo Speridião (SPERIDIÃO, 2007), a primeira que li e me fez pensar que era um trabalho muito diferente dentro da academia, graças a seu tom literário. Nisso, trazer algumas poucas coisas que tenho visto sobre o ensaio e a escrita acadêmica (ADORNO, 2003) (LUKÁCS, 2014) (DUARTE, 2007) (LARROSA, 2003), lê-las, a cada uma discutindo a existência de reminiscências literárias em trabalhos pretensamente científicos, especulando sobre uma inescapável presença do artístico e sua insubordinação metodológica nas mãos de quem escreve o conhecimento.

Mas não. Esse trabalho, arquivo que é, só se fará como um diário de campo de si mesmo. O que exponho aqui, então, são os pequenos passos que dei, alheios a tudo, alheios aos rigores, que me fizeram querer falar tão bem das coisas que mencionei ali em cima. Mas não falarei bem delas. Esse trabalho é um canteiro de obras; sua fala é gaga, e seu gaguejo até que é compreensível, mas só se detenho a ele alguma atenção e calma. E se tenho fé que ele fará mais sentido num futuro, em que terei escrito algo que o faça ser um arquivo melhor; um melhor rastro do que ainda não redigi.

(ou melhor. chegar mais cedo no trabalho. pôr os papéis novamente num escaninho. mas ao invés de colocá-los no escaninho em que eu os guardava sem chaves, os guardar no meu escaninho pessoal, fechá-lo com a minha chave, e não usa-lo mais para guardar meus itens pessoais. nunca mais devolver as chaves, esquecer de devolvê-las no meu último dia de trabalho. muito mais que cem papéis guardados num armário, com sua chave perdida. segunda eu faço isso. antes do horário. não vou avisar a ninguém.)

Há um tempo, coleciono os papéis em que carregamos impressa nossa rotina de trabalho, nós que monitoramos o museu. Papéis dobrados, que depois de certo horário já não são mais abertos, e que se acumulam nas lixeiras do fim dos dias, com exceção desses que colecionei.

Os guardo num de nossos escaninhos vazios, que testemunham a ausência de monitores em relação ao passado de nossa equipe, quando maior. Entulhados, um a um, já ocupam todo o seu interior, a ponto de caírem aos montes ao eu inserir mais um novo papel. Tanto que, quando Guilherme e André pensaram num novo jogo artístico, alheio ao nosso trabalho regular, em que deveríamos criar algo a partir do trabalho como um tema, eu prontamente já pensei no que propor.

Retirar os papéis do escaninho. Era só o que queria fazer. Mas combinamos de mostrarmos o que fizemos no dia sete, amanhã, sem chances de remarcarmos, de cancelarmos, para performarmos desde já as durezas dos pactos rotineiros. E percebi isso com clareza ao ver, tarde demais, que amanhã estarei de folga.

Como encontrar com eles, com minha coleção, em nossa jornada de trabalho, se não estarei aqui? Não encontrarei. Estarei longe. Mas planejei me fazer presente num ato. Amanhã, os papéis já não estarão escondidos naquele escaninho. Agora são 18:57. Todo mundo foi embora. Menos eu. Estou em frente ao ponto biométrico, com uma sacola enorme de papéis comigo. Encosto meu dedo, bato o ponto. E agora sento na praça pra terminar de escrever isso.

Há um vazio. Foi isso que fiz. Desculpe a vocês, André e Guilherme, que me disseram, entre risos, que não valeria fazer algo conceitual, desmaterializado. Fiz um vazio, que, por sua vez, me fez atentar para o que são esses papéis. Mesmo sem os abrir, em suas faces externas vi que guardam os desenhos que Rodrigo agora poderia tatuar, conversas escritas entre Daniel e Silvana, rascunhos das atividades educativas que fizemos. Vi que precisam ser preservados, que são nossas memórias, e pensei: como transformo isso em trabalho, algo com o mesmo nome do que temos por temática nesse jogo e que o museu coleciona? Como fazer virar trabalho isso, para que seja acervo daqui, e que sejam acervo daqui então nossas histórias, sempre tão apequenadas frente as bandeiras que flamurarão mais alto que nossos hasteios? Como?

São 19:13, e tenho uma sacola de papéis ao meu lado aqui na Praça Mauá. Subverti em algo as regras do jogo, já não escrevo isso em horário de trabalho. Talvez pelo transbordar desses papéis mesmo, para fora do MAR, trabalho também para fora da minha escala. Mas entendo que não entrego para a proposta esse texto. É o vazio que entrego, amanhã, mesmo que ninguém o veja no escaninho sem nada. Há dois vazios, contudo, que entrego amanhã, enquanto descanso. Meu lapso com relação à minha folga se tornou um gesto constitutivo inescapável. Estar ausente se fez parte, e sumir com algo mais me soou coerente. São 19:39. E eu vou embora já.

Imagem meramente ilustrativa

performance: trabalhando como monitor na exposição arte, democracia, utopia – quem não luta tá morto, no museu de arte do rio, permanecer o máximo de tempo possível fora do espaço delimitado pela obra faça você mesmo: território liberdade, de antônio dias.