(retirei da revista Dazibao, n. 3)

A declaração e o relato aqui apresentados são resultado da auto-organização política das trabalhadoras e trabalhadores do setor educativo da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. A declaração foi distribuída como um panfleto junto à intervenção dos mediadores na mostra. Os dois documentos foram publicados originalmente no blog do grupo <https://coletivoam.wordpress.com>

Quando falhas operacionais são desigualdades estruturais – por quê o Coletivo Autônomo de Mediadores realizou uma paralisação na 9ª Bienal do Mercosul/Porto Alegre

Relato de uma mediadora

A greve é um momento de verdade, cada um tem de escolher seu campo.

No dia 10 de novembro de 2013, o Coletivo Autônomo de Mediadores paralisou seus trabalhos na 9ª Bienal do Mercosul / Porto Alegre. Era o último dia da mostra.

Por que uma paralisação? Primeiro, pela urgência de revelar ao público visitante as práticas de caráter discriminatório e segregatório de instituições como a Fundação Bienal, efetuadas ao longo da 9ª Bienal. Segundo, esclarecer que, como mediadore(a)s, ao mesmo tempo cidadã(o)s e trabalhadore(a)s na mostra, repudiamos tais práticas.

Somos trabalhadores e trabalhadoras de algo imaterial. Não produzimos carros ou pregos; produzimos conhecimento, descoberta, aprendizado: diálogo. Um diálogo baseado na construção da igualdade apesar e para além das desigualdades que estruturam nossa sociedade. Logo, neste dia, nossa mediação era menos em relação às obras expostas, e mais um diálogo – na forma de um constante questionamento – sobre o desigual acesso à “arte” e à “cultura”.

Nossas atividades iniciaram em torno das 9h no exterior da Usina do Gasômetro e terminaram às 21h no interior do prédio. Pela primeira vez, fizemos o mesmo horário de trabalho do(a)s seguranças que, desde antes da abertura da 9ª Bienal chegavam antes das 9h da manhã para sair às 9h da noite.

Enquanto algun(a)s colegas se dedicavam à confecção dos cartazes, outro(a)s realizavam a distribuição dos panfletos e da declaração (publicada no blog). Ainda pela manhã, uma das artistas da mostra cruzou por nós e, num sorriso que expressava apoio ao nosso ato, retirou da bolsa seu crachá, no qual constava a versão em espanhol de uma frase proferida por mediadores e mediadoras: sin mediador no hay bienal. Então, convidou-nos para participar de sua performance que iria ocorrer ao ar livre, na orla do rio Guaíba.

Permanecemos na rua enquanto o tempo permitiu. Ora iniciávamos o diálogo com alguém que passava, ora éramos interpelado(a)s por quem circulava. Logo nos aproximamos da entrada do prédio e, ao lado da funcionária que distribuía o folder institucional da mostra Bienal, distribuímos os panfletos do coletivo autônomo.

Estávamos distribuindo os panfletos próximos à porta de entrada quando irrompeu a primeira tensão do dia: um rapaz que havia solicitado alguma informação à guarda municipal – é comum estarem, sempre, dois ou três guardas na Usina – fora recebido com agressividade pelo policial e passou, também, a mostrar certa hostilidade em sua fala. Próxima a eles, eu observava. O(a)s demais colegas já haviam se afastado e me sugeriram fazer o mesmo, já que poderia “acabar sobrando pra nós”. Resisti em me distanciar e fingir que não era comigo, embora compreendesse que qualquer situação atípica, nesse dia atípico, poderia ser lida como gerada pelo(a)s mediadore(a)s e, assim, nosso(a)s chefes poderiam nos culpabilizar. De certa forma, era como se precisássemos nos proteger de qualquer “confusão” para não sobrar pra nós. Bem, o argumento fazia sentido. Ziguezagueei um pouco até finalmente me afastar.

Porém, não imaginávamos que, pouco tempo depois, se instauraria outra violência, esta sim, dirigida a nós, mediadore(a)s. A possibilidade de deslegitimação do ato era cogitada, mas creio que nenhum de nós cogitou a possibilidade da violência. Talvez devêssemos ter aceitado, desde o início, que qualquer coisa poderia ter se tornado um motivo para “sobrar pra nós”, simplesmente porque quem faz paralisação, manifestação ou greve – para utilizar um termo mais comum entre as classes trabalhadoras – é sempre culpabilizado; seja por obstruir o trânsito, seja por obstruir, justamente, o trabalho.

A chuva fez com que entrássemos no espaço expositivo. Embora nosso desejo fosse realizar o ato na rua para demarcar nossa ausência no espaço de trabalho, tivemos de deslocar nosso ato para o interior do prédio: na entrada, ao lado de uma obra que se propunha uma relação entre fora/dentro, na forma de uma praça.

Eu conversava com um visitante quando um homem, exaltado, adentrou o prédio e começou a hostilizar todo(a)s que ali estavam, mediadores, seguranças e público. A certa distância, eu ainda não compreendia muito bem o que acontecia. Nem eu, nem o visitante. Aos poucos foi se tornando clara a atitude violenta desse funcionário, de outro setor, que se dizia representante da curadora da exposição e da coordenadora do projeto pedagógico (setor referente à equipe de mediação).

Ele então tentou tirar os cartazes expostos no chão. Numa agressividade assustadora, xingou-nos e lançou ameaças de morte a um colega. Afirmou que nós estaríamos desde o início “desorganizando a bienal”. A expressão violenta, em sua face e em seu corpo, fez com que chegássemos a supor que ele seria, ou estaria, uma pessoa “alterada”. No entanto, antes de patologizar a atitude, de considerá-la um caso isolado ou uma “falha operacional”, precisamos reconhecer que embora ela pareça destoante num primeiro momento, ela é, na verdade, representativa da violência simbólica que vinha sendo exercida de forma individualizada, nos corredores e nas conversas particulares ao longo da 9ª Bienal.

O visitante com quem eu conversava chegou a tentar dialogar com o referido funcionário, mas ele era incapaz de tecer um diálogo. Se exaltava, levantava o tom de voz, apontava em nossa direção. Os seguranças chegaram a intervir, também tentaram conversar e acalmá-lo. Em certo momento, ele saiu do prédio, mas logo retornou. Fez idas e vindas hostis até que chegassem a curadora e a coordenadora do projeto pedagógico – aquelas que ele dizia estar representando – para uma conversa conosco, o(a)s mediadore(a)s.

Ora, tal atitude foi tanto a expressão real dos constrangimentos morais que mediadores e mediadoras vinham sofrendo de maneira individualizada, quanto a efetivação da discriminação praticada por classes privilegiadas. Assim como a paralisação catalisou uma série de processos que ocorriam ao longo da mostra, a atitude violenta desse funcionário pode também ser lida como representativa da forma como a instituição nos trata – mediadore(a)s, seguranças e público. Atitude, essa, corroborada pela “conversa” que se deu com a curadora e a coordenadora, mais uma vez omissas em relação às violências praticadas.

Quando elas chegaram, nos reunimos em círculo ao redor de nossa intervenção (artístico-política). O ponto de partida para o “diálogo” foi a pergunta “o que está acontecendo aqui?”. Sobre a violência, nenhuma palavra; exceto o pedido de que nós, mediadores e mediadoras, nos colocássemos no lugar daquele funcionário que se sentia atingido por tamanha intervenção nas obras, visto que ele havia trabalhado intensamente ao lado do(a)s artistas.

Fomos acusado(a)s de contradição, de praticar aquilo que criticamos em nossa declaração pois o ato no interior do espaço expositivo estaria impedindo, ao público, o acesso às obras, apesar do público ter mostrado apoio ao nosso ato. De acordo com a coordenadora do projeto pedagógico, a maioria dos tópicos de nossa declaração referia-se a “falhas operacionais” e, partindo disso, fomos insistentemente interrogado(a)s sobre onde queríamos chegar com nossas declarações e reivindicações.

Como assim falhas operacionais? Um jantar realizado pela e para uma elite que tem o privilégio de burlar as regras de cuidado e manutenção de um patrimônio público é uma falha operacional? As perseguições e constrangimentos morais praticados pela direção do MARGS a(o)s mediadora(e)s é uma falha operacional? As sessões fotográficas realizadas nos espaços expositivos onde toca-se em obras que não se permitia tocar é uma falha operacional? Um evento divulgado para o público em que, repentinamente, entram apenas aquele(a)s que constavam numa espécie de lista VIP é uma falha operacional? O desvio de função pelo qual passaram mediadores e mediadoras é só uma falha operacional? Não estaríamos diante da exacerbação de uma desigualdade estrutural na qual se reproduz o privilégio de certas classes sociais e se desvaloriza outras (públicos visitantes, mediadora(e)s e demais trabalhadore(a)s)?

O visitante com quem eu havia conversado participou da “reunião”. Manifestou-se perguntando à curadora e à coordenadora o que elas viam de tão errado em nosso ato político porque, para ele, tratava-se de um ato que questionava as estruturas de poder vigentes em nossa sociedade. Elas não responderam sua questão e, embora tenham dito que não era errado, frisaram que, como mediadore(a)s contratados pela Fundação Bienal, nós tínhamos feito um acordo de que trabalharíamos até o último dia da mostra e, através de uma paralisação, não estávamos cumprindo com esse acordo. A curadora disse que não queríamos trabalhar. Pediu nossas bolsas e crachás para que então colocassem outras pessoas em nossos lugares – essas pessoas usariam os crachás com os nossos nomes? Por que o crachá?

O funcionário violento rondava por ali. Ao ouvir um colega que tentava realizar a mediação do ato com visitantes, gritou “olha aqui, ele tá com discurso político”. Qual o problema de falar em política? A arte é um campo sagrado no qual a política não adentra?

A “conversa” prosseguiu, apesar da intervenção. Como mencionei, uma das obras ao lado da qual estávamos era como uma praça, propondo uma relação entre fora/dentro, interior/exterior, bem como espaço público/espaço privado. E o que acontece nas praças? Diversas apropriações. Assim, nosso ato, mesmo que no interior de um espaço expositivo, era uma maneira criativa de realizar a ideia da obra e foi o que argumentamos com a curadora. Além disso, não estávamos sobre a obra, mas na fronteira entre uma e outra obra.

Diante de nosso argumento, a curadora afirmou que tal relação se tratava apenas de uma metáfora e, em tom pejorativo, afirmou que nosso ato não era muito sofisticado, apesar de termos aprendido a sofisticação ao longo do curso de formação. Há, nessa fala, pelo menos dois ataques: primeiro, que não entendemos que se tratava apenas de uma metáfora; segundo, afirmar que nosso ato não era sofisticado apesar de nos terem ensinado sofisticação no curso. Dois ataques à nossa capacidade cognitiva, portanto, dois ataques ao nosso pensamento. E o que é a paralisação? Um ato concebido desde o pensamento.

Eis a violência simbólica, eis a violência sobre nossa forma de pensar.

Ora, não poderíamos problematizar que a potência da metáfora não está justamente na sua possibilidade de realização? E a potência da mediação na realização/efetivação de metáforas? A mediação como partilha de saberes/aprendizados que se dá entre um eu e umx Outrx com a finalidade de nos transformar; se entendermos a metáfora no sentido da transposição (ou seja, do deslocamento), não é justamente isso que realizamos na mediação ou como mediação? O diálogo não acaba por transpor o eu e x outrx a outros lugres, outros eus?

Quanto a ser ou não sofisticado, a definição que consta no dicionário me parece reveladora do elitismo violento impregnado no pensamento da curadora. Segundo o Houaiss:

– sofisticado (datação séc. XVI): que se sofisticou;

1. enganado com sofismas 2. que foi alterado fraudulentamente; falsificado, adulterado 3. que tem sutileza ou utilidade sofística 4. que não é natural; postiço, artificial, afetado 5. falsamente intelectual ou rebuscado 6. que tem requinte, originalidade, bom gosto; fino, requintado 7. que demonstra conhecimentos profundos e atualizados sobre (alguma coisa); profundo, complexo, erudito 8. que é muito avançado, complexo, bem aparelhado, eficiente; aprimorado. [etimologia: verbo sofisticar, do francês sophistiquer que significa “enganar com sofismas”]

Sofisma é um argumento que produz a ilusão da verdade. Em termos informais, podemos dizer que é um sinônimo de mentira. Se levarmos em consideração as primeiras cinco definições, fica evidente por que não somos sofisticado(a)s. Nosso ato não teve a intenção de enganar mas de revelar, em sua forma crua, as desigualdades que nos atravessam e estruturam tanto o campo da arte quanto os demais campos do social. Não se trata de falsificar ou ser artificial. A paralisação – ou greve – é a ação através da qual as classes trabalhadoras buscam explicitar a desvalorização, a desigualdade e a violência sofridas no ambiente de trabalho. Ou seja, mostrar a verdade sobre a exploração do trabalho. E é nesse sentido que penso nossa paralisação: uma forma autêntica de revelar verdades, não uma forma sofisticada de construir erudição sobre qualquer assunto. Supor que nosso ato não é eficiente, visto que curadora e coordenadora reiteraram que nossas reivindicações não estavam chegando onde deveriam chegar, é só uma maneira de deslegitimá-lo.

As estruturas de poder às quais se referiu aquele visitante não são seres abstratos que pairam num céu enevoado, distante e acima de nós. Elas se produzem e reproduzem no nosso dia a dia, nas nossas práticas, nos nossos corpos: quando a instituição se cala diante do desrespeito e da violência ou, na figura de sua presidente, afirma que “aqueles que criticam o jantar não estavam lá e portanto não podem avaliar o risco às obras e ao patrimônio”. Essas estruturas são, na verdade, relações de poder e foi na forma de uma relação onde se perpetua poder que curadora e coordenadora do pedagógico instauraram essa “conversa” conosco. Um poder, obviamente, eficaz: para evitar a entrega de nossos crachás, ficou acordado que parte da equipe voltaria a trabalhar, mas o ato seguiria na entrada do prédio, apesar do pedido de que o retirássemos dali. Após o término da “conversa”, curadora, coordenadora e o violento funcionário se retiraram. Nós continuamos num intenso diálogo com os públicos visitantes sobre arte, política, cultura, desigualdade. Ao fim do dia, colegas de outros espaços expositivos vieram se somar, e uma chuva torrencial fez muito mais pessoas, que passeavam no entorno, entrarem na Usina do Gasômetro. Nossos diálogos se multiplicaram. Acho que pela primeira vez a chuva foi sinônimo de um clima favorável.

(retirei da revista Dazibao, n. 3)

A declaração e o relato aqui apresentados são resultado da auto-organização política das trabalhadoras e trabalhadores do setor educativo da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. A declaração foi distribuída como um panfleto junto à intervenção dos mediadores na mostra. Os dois documentos foram publicados originalmente no blog do grupo <https://coletivoam.wordpress.com>

Declaração

Coletivo Autônomo de Mediadores

Nós, do Coletivo Autônomo de Mediadores, composto por trabalhadores da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, viemos declarar nosso descontentamento com relação a episódios ocorridos durante o exercício de nossas atividades. Como parte do núcleo de mediação atuante nesta mostra de arte, nosso trabalho é receber, acolher e dialogar com o público agendado e espontâneo que adentra os espaços expositivos.

Os episódios descritos a seguir evidenciam arbitrariedades no tocante ao uso desses espaços, expressas por práticas institucionais que restringem o acesso do público visitante segundo critérios discriminatórios e segregatórios. Julgamos importante declarar nosso posicionamento e esclarecer que não compactuamos com tais práticas, visto que a mediação se fundamenta no respeito a todo e qualquer tipo de público que chega aos espaços expositivos – independente de gênero, classe, etnia ou idade.

1. No dia 04 de outubro de 2013, foi realizado um jantar de caráter privado dentro da sala Ado Malagoli, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, tendo como justificativa a obtenção de fundos para futuras aquisições de obras de arte para a instituição pública. Durante o evento, foram acesas velas sobre as mesas localizadas ao lado de uma obra construída com 4.800 peças em papelão e que ocupa, durante o período da mostra, a parte central do segundo andar da referida instituição. A organização do jantar foi iniciada antes do fechamento do museu, que ocorre às 19h – de modo que o espaço ainda estava aberto para visitação e, portanto, os mediadores ainda estavam em horário de trabalho. É importante frisar que membros da Fundação Bienal do Mercosul estavam presentes no jantar, e essa não informou os mediadores e supervisores que trabalhavam no MARGS sobre o evento. Tal fato dificultou o acesso do público a algumas obras expostas, além de interferir no trabalho educativo no espaço do museu. Às 18h45min já havia mesas e cadeiras posicionadas ao lado da obra do artista norte-americano Tony Smith. Outra obra exposta no MARGS estava interditada devido às luzes acesas e ao plástico com o qual o chão foi forrado. Entretanto, no dia seguinte ao evento, os mediadores que trabalham no turno da manhã no museu do Estado encontraram cera de vela, manchas de comida e cacos de acrílico sobre o carpete.

2. Entendemos que a organização de um jantar no meio do espaço expositivo é um desrespeito às próprias normas estabelecidas pela 9ª Bienal do Mercosul e pelo MARGS, uma vez que, para garantir a conservação das obras, não é permitido consumir alimentos e bebidas nas salas onde estas estão expostas. Diante de tal fato, soam incoerentes as recomendações e cobranças de preservação das obras – dirigidas tanto aos mediadores quanto ao público.

3. Nos dias posteriores ao jantar, assim como nos dias seguintes à publicação de uma carta que relatava o acontecido, houve constrangimentos e perseguições aos mediadores por parte da direção do MARGS, dentro e fora do ambiente de trabalho.

4. Entendemos que houve omissão por parte da Fundação Bienal quanto aos ocorridos.

5. No dia 17 de outubro de 2013, foi realizada uma sessão fotográfica para um editorial de moda em horário de visitação pública nos espaços expositivos da Praça da Alfândega da 9ª Bienal do Mercosul, em que estavam ausentes o cuidado e a conduta adequados à conservação das obras. Condutas essas que são rigorosamente exigidas do público visitante, a quem foi impossibilitado, nesta ocasião, o acesso a parte do espaço expositivo.

6. No dia 24 de outubro de 2013, foi realizada uma performance no Santander Cultural com ampla divulgação de entrada gratuita e solicitação de chegada antecipada devido ao número limitado de lugares. No entanto, puderam assistir somente algumas pessoas que, minutos antes do início do evento, foram anunciadas pela equipe de produção como presentes em uma lista até então desconhecida tanto pelo público quanto pela equipe de mediação que aguardava no local em fila formada conforme ordem de chegada. Cabe salientar que os nomes na lista estavam relacionados a uma determinada condição social de distinção, status e privilégio, bem como a vínculos pessoais com figuras da Fundação Bienal.

7. Quanto ao tratamento dos demais setores da Fundação Bienal para com os mediadores, existem diversas situações corriqueiras que caracterizam a diminuição da função e do trabalho de mediação e a própria condição de sujeito por parte dos mediadores. Como exemplificação dessa circunstância, na referida performance realizada no Santander Cultural, houve desvio de função de nosso trabalho. Isso porque os mediadores foram convidados pelo núcleo educativo (setor encarregado da equipe de mediação) para trabalhar na mediação da performance. Contudo, orientados por outro setor e com a discordância do próprio núcleo educativo, foram levados a realizar atividades que não correspondem ao trabalho de mediação, trabalhando como ascensoristas e recepcionistas.

8. Além da não observância e reflexão de nossa real função no espaço expositivo, são recorrentes as interrupções abusivas e situações de constrangimento durante a realização das mediações por parte dos outros setores da Fundação Bienal.

9. Ainda no dia 24, no espaço expositivo do Memorial do Rio Grande do Sul, um sujeito, que se identifica como “queer” (sem gênero ou sexualidade definidos), ao utilizar o banheiro feminino para se maquiar, foi convidado a se retirar do ambiente por medida de “segurança”, de maneira agressiva. A medida é representativa de assédio moral, psicológico e abuso de autoridade, pois foi seguida de empurrões até a saída do espaço expositivo, conforme consta em registro audiovisual. A violência que aconteceu nessa situação gerou ao visitante um mal-estar, exposição indevida e exclusão das dependências da 9º Bienal do Mercosul. Isso reflete restrições segregatícias impostas a diferentes públicos, a partir das questões de gênero e sexualidade dentro dos espaços expositivos, bem como a negligência e a omissão da Fundação Bienal em relação a sua inclusão.

10. Constatamos também a insuficiente preparação para a execução de audiodescrição em caso de visitas de grupos com deficiência visual, salientando nossa preocupação com a qualidade da mediação a esses grupos. Ademais, notamos a falta de estruturas que possibilitem o melhor acesso por esses grupos aos espaços expositivos, devido à ausência de descrições das obras em braile, assim como de materiais táteis (os quais acabaram sendo pensados e elaborados pelo setor de mediação do Santander Cultural). A acessibilidade para cadeirantes é mínima, como também o é para surdos, devido ao escasso número de mediadores intérpretes de Libras (língua brasileira de sinais).

Frente a estes modos de relação que agrediram e agridem em diversas instâncias o público das exposições e a equipe de mediação da 9ª Bienal, nós do Coletivo Autônomo de Mediadores declaramos nosso repúdio e nossa total dissociação dessas práticas que estabelecem tratamentos diferenciados e elitistas e que favorecem aqueles que possuem maior poder aquisitivo ou status social. É inadmissível que haja qualquer tipo de distinção de público nesses espaços, especialmente porque se trata de uma exposição que recebe apoio financeiro oriundo de dinheiro público (Lei no.13,490/10 – Pró-Cultura/RS) e mecanismos de incentivos fiscais (Lei n° 8313/91 – Lei Federal de Incentivo à Cultura) cujos artigos iniciais já deixam claras as exigências para concessão de incentivo:

Art 2°, § 1o Os incentivos criados por esta Lei somente serão concedidos a projetos culturais cuja exibição, utilização e circulação dos bens culturais deles resultantes sejam abertas, sem distinção, a qualquer pessoa, se gratuitas, e a público pagante, se cobrado ingresso.

§ 2o É vedada a concessão de incentivo a obras, produtos, eventos ou outros decorrentes, destinados ou circunscritos a coleções particulares ou circuitos privados que estabeleçam limitações de acesso.

É por acreditarmos em uma ética e uma política da mediação, independente das premissas elitistas e segregatórias das instituições, que somos contra ações que (a) inferiorizam ou desconsideram qualquer pessoa em qualquer espaço cultural e (b) são irresponsáveis no cuidado com o patrimônio público (do qual fazem parte os museus mencionados). Acreditamos que a arte não deva ser um ambiente restrito e socialmente privilegiado – reproduzindo em nível simbólico a desigualdade social –, mas sim de acesso a todos, democrático, popular e universal. Defendemos uma relação sem distinção da frequentação, acesso e circulação dos espaços expositivos. Reivindicamos a eliminação de critérios arbitrários no acolhimento de visitantes, bem como em relação aos educadores que trabalham nos espaços da 9ª Bienal do Mercosul.

Manifestamos nosso repúdio a situações de exclusão e segregação de públicos, bem como à má condição e vulnerabilidade do educador trabalhador da equipe de mediação, hostilizado em diversas situações.

COLETIVO AUTÔNOMO DE MEDIADORES

Porto Alegre, novembro de 2013.

(retirei da quinta edição da revista Urbânia)

 

 

MATERIALISMO EDUCATIVO DA BIENAL DE SÃO PAULO (CAPITAL): a teoria crítica como prática educativa.

Carolina Oliveira, Rachel Pacheco e Thauany Freire

Este texto foi escrito coletivamente por ex-estagiárias do setor educativo da Bienal de São Paulo. As opiniões aqui expressas são reflexo do acúmulo das experiências e discussões que, presentes ao longo do nosso tempo de trabalho na instituição, acabaram por extrapolar o expediente ganhando um corpo autônomo, como aparece aqui.
Nossa intenção é endossar a perspectiva crítica em relação a este trabalho e despertar as possibilidades de empoderamento desta classe de trabalhadores.
O dinheiro que receberemos pela nossa contribuição na revista Urbânia 5, projeto oficialmente vinculado à mostra deste ano, será totalmente revertido para a luta social autônoma.

O que você gira quando gira a catraca?

Desde 1951, ano de sua primeira realização, a mostra Bienal de São Paulo já foi montada e desmontada por trinta vezes. Quando este texto começar a circular, em dezembro de 2014, a Bienal estará prestes a desfazer-se de seu conteúdo expositivo novamente, agora pela trigésima primeira vez. Quase nada é original da primeira edição, nem o próprio pavilhão – símbolo máximo da exposição –, que só passou a ser ocupado pela IV Bienal em 1957. Nessa perspectiva histórica, de constante composição-dissolução da mostra, somente uma coisa permaneceu em meio a todo o vai-e-vem das obras (além do espírito de Ciccilo, seu presidente perpétuo, rondando o prédio): um objeto tridimensional mecânico, um signo social vivo, movido pela energia cinética de corpos em movimento. Este objeto, que não é propriamente um monumento, nem mesmo uma obra, mas cuja imagem representa muito melhor do que muito objeto de arte uma síntese material da sociedade: este objeto é a catraca. A catraca, o carro abre-alas, que recebe o público de braços abertos para envolvê-los em seu inesgotável eixo de rotação.

Sabemos que, no cotidiano das visitas, a subjetividade dos visitantes é menos importante do que certas determinações mais objetivas. Falando do ponto de vista de quem trabalha diretamente na engrenagem da máquina, percebemos que apesar de toda a aura mágica que pretende ter a visita educativa, um único educador tem que render e atender ao máximo de público em seu tempo de trabalho, ainda que para isso tenha que receber o dobro de gente em dois tempos mínimos de visitação. Se for necessário, estipula-se um tempo hábil pífio para que o grupo que chegou atrasado permaneça dentro do espaço: basta que o educador faça o grupo girar a catraca na entrada e na saída. Aí já se concretizou o mais fundamental da visita. É responsabilidade primeira do educador fazer girar a catraca e as cifras de público. Em seguida, deve garantir neste entretempo a integridade física dos objetos de arte, porque cada negócio ali exposto tem valor de mercado e é assegurado por cifras inimagináveis: às vezes o preço pago só para que um determinado objeto fique ali parado custa muito mais do que o salário de uma porção de funcionários (o conteúdo da visita, pelo que percebemos em nossas próprias atuações, pouco importa: a livre e espontânea legitimação da máquina fica por conta do grau de deslumbramento que o educador atingiu em relação ao discurso-poético–institucional ao decorrer de sua formação).

O que isso tudo quer dizer? Quanto mais público a Bienal mobiliza, mais ela se valoriza. E quem ganha com isso? Os visitantes ganham experiências (seja lá o que isso significa), os educadores, que são os principais agentes da rotatividade da catraca, ganham um salário (ou ajuda de custo) que mal permite pagar as contas da vida em São Paulo (Capital). E, de alguma forma muito abstrata porém real, já que a entrada é gratuita e o dinheiro não vem líquido da bilheteria, todos os tipos de investimentos feitos pelos  patrocinadores da exposição são motivo de grande prestígio social. Mas não apenas: se o orçamento de uma Bienal chega a custar milhões de dinheiros, nenhuma grande corporação ou agência estatal o bancaria de graça – tamanha mobilização de capital só se faz possível porque se produz valor ali. É importante lembrar que os montantes investidos são cada vez mais estratosféricos, sobretudo a partir da 29a Bienal, que marcou tanto um momento de pesada revitalização financeira quanto de estruturação do educativo como setor fixo na divisão social do trabalho na instituição – coincidentemente ou não, foi o ano que marcou um dos maiores públicos da história da mostra.

Criticar a Bienal em relação aos seus conteúdos é algo muito banal. A crítica é parte integrante, e muito importante, do mundo da arte oficial. Mas a crítica só aparece, dentro da instituição, em torno de certos assuntos, mas nunca se fala da Bienal como sistema econômico no interior da lógica capitalista. Não é permitida a apreciação materialista da arte contemporânea, ou os educadores perceberiam que trabalham para uma espécie de bolsa de valores, e que recebem no fim do mês (se recebem no fim do mês) um valor muito menor do que o valor que produzem ao trabalhar fazendo a catraca girar. Imagine só então se os educadores se aprofundassem na crítica ao trabalho na Bienal e, refletindo sobre a exposição com esse grau de implicação, passassem a sabotar o discurso-poético-institucional para mediar ao público a relação tríplice entre a mostra, a arte como mercadoria e o mercado financeiro global! Ou se revelassem ao respeitável público que a presença deles ali tem importância igual ao número que eles somam no relatório de público. Não é a toa que a coordenação do educativo sempre temeu a possibilidade de qualquer ação direta: uma greve educativa! Ou mesmo um sequestro de público: ao invés de propor qualquer percurso dentro do prédio, o educador convida o público para rolês pelo parque.

É à Fundação Bienal de São Paulo, como máquina do mercado de arte movida desde o princípio pelos números extraordinários de público, que se dirige esta crítica. E esta crítica é redigida justamente por pessoas que, um dia, já foram parte da engrenagem que gira a catraca, operárias que fizeram mover a máquina. Esta crítica à economia política do espaço expositivo foi feita a partir do acúmulo de experiências de gente que participou efetivamente do proletariado do setor educativo, uma crítica aliás que não foi possível difundir amplamente durante o tempo em que nos pesava o crachá no pescoço e que nosso corpo estava envolto pelas logos dos patrocinadores multinacionais – as retaliações oficiais por parte dos supervisores ao nosso comportamento “crítico demais” pareciam motivos morais para demissão. Hoje, ironicamente (ou não), estamos sendo pagas pelo dinheiro desta mesma instituição para criticá-la publicamente em uma publicação contemplada pela curadoria da exposição. Assim, explicita-se o limite territorial onde a crítica radical é  permitida na Bienal: como linguagem de arte, a expressão pode ser livre – mas como expressão da consciência de classe, não.

Onde fica a fronteira entre o público e o privado?

É curioso como no dia da abertura da exposição, entre pulos e sorrisos, há um fato pairando sobre toda a equipe de educadores: o coro dos contentes está formado. Este coro é resultado de um longo processo de “formação” que antecede o início do evento e que conta com um bem armado falatório sobre os valores da Instituição, sobre o conteúdo da Obras ali expostas e sobre os adequados procedimentos para lidar com o público. Aliás, um dos apelos que mais afinam este coro é aquele relacionado ao caráter público das exposições, apelo que adocica a atuação de qualquer educadora e educador.

Zelando pelo público do educativo, na sua maioria composto por crianças e  adolescentes em “excursão” compulsória, educadores e educadoras sentem-se na linha de frente da democratização da arte, uma vez ampliando e facilitando o acesso gratuito àquelas obras tão valiosas. Invoca-se para essa missão democrática, aceitamos trabalhar sob a cínica posição de voluntários, para que possamos dissimular a nós mesmas a precariedade da nossa condição. Aceitamos nos submeter ao democrático sistema de trabalho, onde qualquer um que tenha intentado uma mínima manifestação insurgente – seja contra o atraso de pagamentos ou contra as exigências mais insólitas por parte dos coordenadores – tenha percebido que para o corpo diretivo ‘democracia demais atrapalha a democracia’.

O que se esconde ali, embora mal, é o fato de que o público e o privado se embaraçam como realidades diretamente dependentes, onde nitidamente o privado é a finalidade última da relação. O privado orienta e dá qualidade ao que há de público. Acima de tudo, o espaço da Bienal é um sítio privilegiado da avaliação de obras privadas, sejam elas propriedade do artista ou do mecenas que a quer ainda mais valiosa. Vale lembrar que Ciccilo Matarazzo, além de dividir charutos importados com os industriais da nascente economia paulista, era um notável membro do mecenato internacional. Essa avaliação depende do público, a condição necessária da acumulação de comentários, experiências e polemicazinhas (por isso quanto mais “radical” melhor) que fazem a obra sair dali mais rentável do que entrou. Sair de lá “valendo” menos não vale. Qualquer gesto que insinue contato parece ser um disparador e tanto: dispara de nervoso o coração tanto dos seguranças terceirizados quanto do batalhão de “guardadores” de obra e educadores que se ocupam, acima de tudo, de proteger o bem privado do público.

Há também, dentro daquilo que ronda a realização das Bienais, uma confusão entre os conceitos de público e de Estado. E se hoje uma boa parte do  financiamento tem origem estatal é porque a base de contagem do público – novamente ela, a Catraca – contabiliza uma quantidade suficiente para justificá-lo. A democracia é assim equivalente à massificação. Não é à toa que os educadores se dobram em mil pra conseguir administrar o itinerário do seu grupo escolar em meio a aquele espaço expositivo apinhado de gente e de vozes.

Bem recorrente é a competição pela mediação de uma determinada obra: os educadores até formulam estratégias para conseguir posicionar um grupo escolar diante de uma obra antes que um colega de trabalho o faça. E essa competição é apenas extensão do clima geral que ganha o educativo. É aí que o feitiço do público volta contra os enfeitiçados. De missionários da democracia cultural a administradores privados dos próprios interesses, vai um átimo. É o que revela o nítido “salve-se quem puder” que vira a equipe do educativo. A noção de “público” deve estar presente apenas quando posta em termos poéticos-institucionais, e exercitada estritamente no momento da “visita educativa”. O que é compreensível, tendo em vista o tom policialesco que domina em qualquer ambiente de trabalho. Paira no ar (e no corpo) o medo de sermos demitidos ou de termos nossos “filmes-queimados” diante dos nomes que dominam os setores educativos de São Paulo – admitindo que, para esta formação específica em arte-educação, é a rede de instituições de cultura da cidade que constitui o mercado de trabalho. Abre-se aí uma competição complexa por influência, uma corrida generalizada pelas redes de contatos mas em clima de concorrência. Importante lembrar que o educativo permanente da Fundação Bienal nasce sob a tutela de todos grandes educativos – e empregadores – da cidade. Se receber o público é um meio de trabalho, seu fim é, e só poderia ser, privado.

O que você vira quando veste a camisa?

A 29a Bienal inaugurou um projeto de educativo permanente que crê na necessidade de um setor educativo para que a Arte alcance o maior número de pessoas, transformando suas vidas. Assim, se faz necessário um exército de educadores que farão a ponte entre arte-e-público, a ligação entre o discurso e a materialidade dos trabalhos e sua realidade apreensível. A formação desse exército só é possível porque estas educadoras e educadores são, antes de tudo, estudantes.

Quando estas e estes estudantes vestem a camisa (estandarte de  patrocinadores) da Bienal, espera-se que virem arte-educadores habilitados a professar os valores dessa Arte. Mas viramos também estagiárias e estagiários contratados através de um frágil vínculo que, tanto nos unia como exército de educadores da mostra, quanto nos descaracterizava como categoria de  trabalho, por vezes impedindo nossa organização como classe ou facilitando o controle sobre o nosso pensamento crítico.

Para vestir a camisa, no entanto, é necessário merecê-la. Assim, passamos por meses de treinamento, controle do corpo e produção de conteúdo,  trabalhando pela exposição intelectual e fisicamente, sendo cobradas como profissionais mas escutadas como estudantes (ao contrário do que enunciara Paulo Freire: como sujeitos inacabados, sem real capacidade crítica e criativa). A Bienal democrática, aberta à reflexão, de “espírito investigador” e flexibilidade – como é dito no texto educativo/curatorial – exigia educadores atentos às hierarquias e respeitosos a um patronato difuso, respondendo em primeira instância a supervisores que, tanto são reguladores do  funcionamento, quanto são igualmente explorados pela máquina. Ao mesmo tempo que sacralizava a tarefa educativa, promovia um tipo de sacrifício de seus estagiários, porque não dava tanta ênfase à necessidade dos salários serem pagos em dia, ou ao fato de que as crises dos estagiários eram urgências trabalhistas. O controle do corpo, do tempo, as exigências sobre o trabalho intelectual e braçal representam o mesmo processo que a máquina educativa aplica para as massas: a arte e a educação realizadas como  projetos civilizatórios.

Como em uma missão humanista, tínhamos a honra de participar de tal projeto, e sua remuneração era apenas um bônus, o valor do trabalho, messianicamente, deveria residir em sua beleza e potência. Dessa forma, nosso empregador, comprador de nosso único bem – a força de trabalho – se reservava ao direito de atrasar constantemente nosso salário, fazê-lo com valores diferentes dos acordados ou ameaçar descontos. Em um processo seletivo, como era o caso da primeira fase do ano de trabalho, não aparecer por falta de dinheiro para o transporte era tido como “uma seleção natural”.

Dessa forma, ao final de uma seleção que exigia também, e quiçá principalmente, o amor à camisa, o estudante tornava-se estagiário. De 500 estudantes “formados” pelo curso (que já era trabalho, pois produzia-se conteúdo), apenas 200 e tantos eram admitidos e premiados com o cargo de arte-educador. A máquina educativa já estava a pleno vapor, produzindo  inclusive as peças sobressalentes: o excedente de trabalhadores. O clima de “escolhidos” para a missão civilizadora da arte educação foi coroado com uma contratação – e demissão – em massa, celebrada, no fim da primeira fase, em um arraial da firma.

A esse ponto, a camisa passa a ser literal, e pesar como tal. Assim, exige-se trabalhadores e trabalhadoras que sejam dóceis, assépticas, educadas (ou seja, normatizadas segundo a moral institucional), que cumpram metas diárias, molas de uma engrenagem que poderia funcionar mesmo sem supervisão.

Foram tornados quadros permanentes dos funcionários da instituição os mais altos postos do educativo. O exército de trabalhadores da base, as e os  educadores, que fundam pontes e transformam vidas, ainda hoje existem na Bienal por frágeis contratos de estágio, mal remunerados (quando o são, já que agora a preparação fundamental para o trabalho é considerada como prêmio), ligados a uma percepção duvidosa de educação para “inclusão”.

Ainda assim, nessa máquina onde os dentes da engrenagem somos nós educadoras, resistem espaços. Posto que esse sistema tenta se justificar pela liberdade e inclusão, ele tem que lidar também com as maravilhosas contradições que evocam tais conceitos. Com as atenções voltadas ao giro da catraca e seus números, a verdade é que ninguém percebe como e pra quê usamos nossas camisas.

Pode a Arte transformar a vida?

Em arte-educação acredita-se que, com a junção dessas duas partes (arte e educação) “pode-se naturalmente transformar o mundo e o indivíduo que nele habita” – é o que nos ensina o texto curatorial do educativo da Bienal -, sendo a instituição cultural o lugar deste encontro, um possível espaço de  transformação. (Como se bastasse ao indivíduo visitar uma exposição na  perspectiva educativa, para provocar uma transformação do seu “eu” e seu mundo). Não se pode naturalizar o discurso da arte-educação dessa forma: arte e educação não são revolucionárias por natureza, mas são valores  socialmente concebidos que, juntos, dão luz a um discurso bem menos revolucionário e libertador do que se julga ser, sistematizando os grandes centros e instituições culturais como máquinas de (re)produção do mundo e dos sujeitos. É dentro deste quadro que a Fundação Bienal de São Paulo alcança sua enorme relevância.

Para atuar, o Setor Educativo parte de determinados valores de Arte extrínsecos ao indivíduo e à comunidade, mas intrínsecos ao mercado. Sob a forma de objeto de consumo rápido e pouco reflexivo, as obras de arte apelam para os sentidos do corpo humano sem necessariamente fazer sentido para a cabeça. Elas brilham, piscam, giram e berram, estimulam o corpo todo, só não estimulam o indivíduo a pensar. Por essa razão, sendo a produção artística incapaz de se relacionar com o indivíduo ou com o mundo de modo mais profundo e transformador, cabe ao educador ser o mediador que vai religar essa cultura produzida ao indivíduo consumidor. Nessa relação não há crítica, não há transformação, não há revolução, apenas consumo. Entre assumir que o lugar do problema está na produção artística, a qual perdeu laço com o mundo e firmou lastro com o dinheiro, e a consequente necessidade de sua transformação, prefere-se pensar que o problema está numa má formação do indivíduo e que, portanto, é ele quem precisa ser transformado. A única transformação aí é do indivíduo em sujeito consumidor de cultura. Assim, aquela educação que previa em seu discurso uma relação criativa e livre entre o indivíduo e a obra de arte gerou um sujeito submisso e consumidor de cultura, pouco capaz de transformar a si mesmo ou o mundo em que vive.

Valores relacionados à educação também são invocados para dar acabamento ao discurso da arte-educação. Nessa fórmula o indivíduo é colocado no centro do processo educativo, trazendo para estes elementos afetivos e subjetivos. Desse processo resulta uma multiplicidade de conhecimentos de acordo com as necessidades e desejos individuais. Constrói-se, desse modo, uma imagem enviesada do mundo, que passa pelas necessidades e desejos do “eu”. Por ser extremamente subjetivo, o conhecimento construído a partir desse processo está isento de críticas partilhadas, protegido pelo “eu” individual e construído além da comunidade. Mesmo nessa construção subjetiva, não há uma liberação do “eu” e do seu mundo, pois sua construção e expressão se dão através de determinados valores de arte e cultura, estando, assim, submissos a esses valores. Nesse complicado processo, cabe ao educador mediar essa relação truncada entre o indivíduo e essa cultura que lhe foi expropriada, completando sentido à complicada linguagem da arte, tudo isso sem parecer direcionar o conhecimento para lado algum, criando a ilusão de que o conhecimento está mesmo nas mãos do indivíduo.

Na pedagogia da arte-educação institucional, o último lugar em que a construção do conhecimento de si e do mundo está é na autonomia do indivíduo em circular, refletir, se expressar. O discurso da arte-educação faz parecer que a participação em atividades culturais realizadas por grandes centros culturais e patrocinadas pelo Estado, por bancos e grandes empresas pode ser revolucionária, pode dar ao indivíduo liberdade e autonomia, mas não pode. As relações de forças da arte, cultura e educação produzem e mantêm um mundo e um sujeito para nele viver de acordo com valores ligados ao mercado. A arte-educação está, portanto, de acordo com esses valores, produzindo massivamente público para consumo dessa arte contemporânea que não comunica nada, um signo sem significado. Ela é tão insignificante quanto o indivíduo que transformou, um sujeito incapaz de dar sentido a si mesmo e ao mundo.

“a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever e prescrever. Como especialista – se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções -, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. A capacidade de descrever esse mundo passa a fazer parte das qualificações exigidas para a execução do trabalho. O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos.”

“um autor de esquerda” apud Walter Benjamin, em O autor como produtor.

assunto: elo
Jandir Jr <jandir.jr@museudeartedorio.org.br> 11 de outubro de 2018 22:17
Para: educadores.mar@museudeartedorio.org.br, epsmar@googlegroups.com, priscilla.souza@museudeartedorio.org.br

oi.

eu e georges fomos escalados para conduzir o laboratório Qual é o parangolé?, que ocorrerá neste sábado. até então, iríamos realizar a atividade com eliã, que a conduziu junto com maria rita nas últimas duas vezes em que ocorreu. discutíamos os desenvolvimentos nessas últimas realizações e os métodos utilizados até então, aprendendo e nos aproximando das complexidades que foram erigindo pouco a pouco das vezes em que Qual é o parangolé? foi realizado, compreendendo o laboratório se constituindo num contínuo de tentativas e aperfeiçoamentos, e que tudo tinham a ver com o próprio modo de trabalho de rita e de eliã (vide seus desenvolvimentos de exercícios corporais e estratégias de engajamento no complexo teoria-prática dos parangolés).

contudo, por motivos pessoais, eliã não poderá realizar a atividade no sábado. rita, que estará comprometida com outras demandas no museu, também não nos acompanhará. não falo por georges aqui; eu observo minha tristeza, desestímulo e (de)pressão com essa mudança abrupta, e percebo que minhas necessidades giram em torno da vontade em poder aprender com meus colegas de trabalho não só em conversas prévias, mas entrando calmamente no projeto que eles mesmo estão a construir, realizar e a perceber, pouco a pouco, transformando-se sutilmente ao longo de sucessivas repetições.

por considerar a dimensão prática tão considerável quanto qualquer planejamento prévio é que lamento não realizar com eliã e rita uma atividade que eles mesmo criaram. é quando percebo com clareza um acordo tácito em nossa estrutura como educadores: que a presença do propositor primeiro é prescindível. não poderia estar mais em discordância: por não me sentir um propositor da atividade, não me vejo engajado nela e desejo o propositor em sua realização. eu julgo que só me sentiria propositor da atividade quando me visse parte de sua história. eliã e rita são o elo histórico para a dimensão desse fazer de que me sinto alijado ainda, mas de que poderia ser um próximo elo mais firme se a fizesse com eles. e como não desejo ter por normal um “aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”, pela vontade de crer uma continuidade entre nós ao fazermos uns as atividades dos outros, envio esse e-mail..

envio esse e-mail fora do horário de trabalho por entender, após horas afetado por isso, sobrepostas às horas cansadas dos dias cansados de dias de trabalho contínuo, que é uma questão de minha saúde mental falar disso para vocês; não mais somente do que concerne ao bater o ponto e fazer certas coisas num museu. gosto de participar do desenvolvimento de atividades a partir do zero, idealizando elas completamente do início. e, quando participo de atividades já desenvolvidas, prefiro realizar ela com quem a construiu antes de mim, para que eu, me avizinhando mais e mais dela, de sua dimensão prática e metodológica, possa sentir ela como minha também, verdadeiramente.


Jandir Jr.
Educador Museu de Arte do Rio
Praça Mauá, 5, Centro – CEP 20081-240 – Rio de Janeiro/RJ
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Jandir Jr <jandir.jr@museudeartedorio.org.br> 11 de outubro de 2018 22:31
Para: educadores.mar@museudeartedorio.org.br, epsmar@googlegroups.com, priscilla.souza@museudeartedorio.org.br

ps – me proponho a realizar a atividade no sábado ainda. e escrevo essa carta como que pro futuro, pros nossos próximos passos. se meu desejo for plausível a vocês também, é claro. por isso cabe perguntar: o que vocês acham?

Ande em uma exposição desinteressado com o que o cerca. Use um uniforme. Tenha sentenças e imperativos escritos nele. Espie seu celular. Interaja com desconhecidas. Controle: fome, sede, ânus e uretra. Aprenda a sentir a passagem do tempo cronológico sem nem precisar olhar o relógio. Veja o vidro manchado, a luz queimada, a borda vincada no canto: nunca a obra. Puxe a coriza para dentro de você. Pelo silêncio, não assoe. Memorize. Esquerda, à frente, um lance de escadas, senhor. Caminhe de modo perdido. Levante suspeitas por caminhar tão perto. O que será que eu fiz? Respeite a distância entre um vírgula cinco e dois metros da visitante. Não toque ninguém, nada, mas acaricie rapidamente a moldura de uma pintura do século dezenove às nove da manhã, antes do primeiro chegar. É proibido qualquer líquido, em perdigoto e mesmo em lágrima. Engula. Fica dentro de você. Atrás dos olhos, tudo contido. Não chore.

Houve um sonho que sonhei. Era 2015 quando deitei a cabeça e deixei de ser eu. Vivia em Marte, e estava com a metade inferior do meu corpo enterrada em sua terra vermelha e deserta. Sob o firmamento negro só meus olhos, ouvidos, cabeça, braços, meu tronco vestido com uma camiseta. Não me lembro de sua cor.

Esticava minhas mãos no curto perímetro que podia alcançar, revirando o solo ao meu redor. Havia coisas que recorrentemente eu encontrava; resquícios de outras espécies que cruzaram a mesma terra que me prendia naquele momento. Livros que achei enterrados, e livros que me ensinaram os idiomas usados em outros livros que li ali, me mostraram um tanto sobre as raças humanas, que pareciam comigo na parte que eu conhecia de meu próprio corpo, e que viviam em grupo, unidas. Já eu, não sabia sequer se pertencia a uma espécie. E mesmo se pertencesse, aqueles como eu estariam também enterrados, distantes de mim, naquele mesmo planeta ou em outros. Como nos encontraríamos?

Tal pergunta não ocupou espaço em meus interesses. No sonho, encontrei logo um dispositivo que desconhecia, antes soterrado por perto. Parecia algo que a humanidade poderia ter construído – minha erudição era toda das literaturas humanas -. E, ao ligá-lo, não me recordo de que modo, comecei a conversar com um outro, de Saturno. Não era um homem.

Ele carregava a areia do solo do planeta de um lado para o outro. O que o empregava se chamava Ampulheta. Como eu, se via sozinho no imenso território, munido somente com longos bolsos em suas roupas; os usava para cumprir sua tarefa. As noites eram tão longas que só falava delas no plural, por serem muitas. E queria conhecer o sol de perto, visitar.

Me causou alguma preocupação. Temi por sua segurança. Ele poderia se mover até lá um dia. Iria se queimar facilmente, eu imaginava. Cheguei a me projetar nesse tipo de empreitada e, claro, só a conseguiria se o sol chegasse até mim. O que me fazia temer ainda: essa aproximação, apesar de lenta, milenar, iria me consumir rapidamente. Derreter em uma fração de segundos. Não via desejável o imediato.

Mas o caminho para o sol cruzava por Marte quando vinha por Saturno. Ele especulava uma parada em sua viagem para me ver. Aquém da preocupação, eu finalmente iria conhecer alguém de perto. Porém, nos demos conta que não sabíamos nossas próprias medidas um em relação ao outro. Ele era bestial, com pelos prata e uma constituição corporal de fera, mas poderia ser do tamanho de uma formiga quando ao meu lado. Vivia em uma diáspora solitária, não conhecera os seus nem outros. Foi exilado do convívio quando filhote, violenta que era sua espécie, e não tinha outra medida de si fora a areia que carregava para a Ampulheta. Eu, parecido que era com a humanidade, imaginava que minhas medidas fossem como as deles, por volta de oitenta centímetros de altura no tronco. Mas isso desconsiderava todo o resto de mim que residia enterrado, penetrado no planeta.

Foi quando disse ele “estou fértil”: me dei conta de que eram raízes o que me descia solo abaixo. De um tamanho descendente que poderia ser toda a extensão de Marte, eu seria enorme. E me enraizava porque daria frutos e sementes, acreditei eu. Em Saturno, havia aquele que poderia receber em sua fertilidade minha semeadura, que desejava vir até mim, mesmo que depois fosse morrer ao visitar o sol. Nos apaixonamos então.

(…)

em Três anos dpois eu retorno a esse sonho. Li Frontispícios. Lembrar de quando minhas pernas, pés, cu, genitais, muladhara, quando fui raiz e me estendi infinitamente num solo que nem conhecia, suspenso num infinito que não era minha terra… li os protagonistas na terra. E perdi a medida central de qualquer humanidade ao ler. Não era perder a humanidade; ainda haviam feridas e hálito, mas o centro já não era ao homem. Vi algo que não humano; a medida de nossas égides cruéis e dolorosas já não media tão bem. Como quando em Marte julgando um dispositivo pelas meus parcos saberes vindos de toda literatura humana que encontrei enterrada, frontispícios me foi leitura que me pôs à margem a centralidade da similitude com o humano e sua linguagem k, com o humano e sua troca de falas,/ com o humano e seus marcos narrativos. o chão protagonizta. Nós o ouvimos para que consigamos dar o próximo passo em segurança. As flechas são atingidas pelo alvo. Tudo ocorre: selva pessoal. Aqui não conjugamos o verbo se Fomos. seremos nós conjugados … … .. . . . . .. Pisque.

peguei uns pedaços daqui do processofolio.tumblr.com) pra pôr num impresso e chamar de tcc../ pra encerrar uma especialização q faço. o que descobri nesse caminho, no entanto, é que esse arquivo aqui é na verdade um tcc de conclusão de graduação, resistindo a terminar de ser escrito. poxa. deve ser então pesquisa, e pesquisa acadêmica o que faço,!. há muito tempo.talvez até mesmo antes de existir meu arquivo. talvez nos meus rabiscados na carteira durante as aulas do ensino fundamental já fosse uma espécie de estudo. daqui começo a pensar que há formas diferentes de pesquisa. formas mesmo , modos de pontuar as frases, de pular os parágrafos ou mesmo de desdenhar do verbal e sua pretensão. bem, é um resumo didsso q faço. pronto