assunto: pode parecer texto mas é conversa

André Vargas

<andrevargasantos@gmail.com>13 de abril de 2018 11:31

Para: “Jandir Jr.” <mailexpressivo@gmail.com>

Não há costume onde não me acostumo. Não há habito onde não habito. O próprio texto é um conflito que não cessa, já que ele fala de si e consigo das coisas que juntos não conseguimos nunca ainda. Pensar no local de trabalho como casa, não a própria, mas casa enquanto tempo de mora, ou templo de moradia, morada – a espera – e esperar que desse tempo possa nascer algum espelho sem alardes em suas paredes onde se possa ver a haver outro eu, alguma resposta em suas portas, algum sinal de nascença do contato entre este eu e o lugar, parece ingênuo. Pareço ingênuo.

O trabalho se sobrepõe ao tento, tanto que nem tento mais, ao menos não à força, não onde não há força. Não é casa porque repele, almeja e alveja nossas marcas, não dá para ser parede onde há tantos quadros, quando muito nossas migalhas de João e Maria são memórias que uns pássaros – eles passarão eu passarinho – comem, como se do fígado de Prometeu a águia reclamasse o fogo dos homens. Não há promessa que se cumpra, não há quem compre essa jornada por mais dinheiro que valha o curso, seguir é tara.

Sou um estrangeiro em uma terra que só eu protejo e não me protege a terra de outros estranhados, mas vez por outra uma águia divina muda a paisagem das angústias. O sentimento é esse estrangeirismo. Novas exposições nos abismam certo tempo para depois, nem a contento, elas serem capazes de se abrir. Contemplo o leve sorrir da Gioconda, virar com tal presteza como um fastio da leveza dos ombros criados ao peso, morto, de papel. Fechadas antes de fechar e fachadas antes de o facho de luz de acender. Ninguém mais procura por deus pela rua ao meio dia com uma lanterna, nem descerá da montanha um Zoroastro. É preciso dar cabo do fazer e descobrir outros mundos, descobrindo um jeito de descobrir outros mundos, descobrindo um jeito de descobrir um jeito de descobrir outros mundos, até que se possa dizer: eu descobri que não tem jeito.

Deixei todas as coisas que trouxe comigo no chão da galeria e cheguei a me afastar delas, expostas como obras quando em minha ausência.

Cássio Luiz:

Viado

Posso fazer um pedido de um amigo comum

Para um amigo artista?

Jandir Jr.:

Hahhahaha lá vem merda

Cássio Luiz:

Pior que é sério

Comece a colecionar cartas

De várias pessoas

Com sentimentos bons

Jandir Jr.:

Uhhmmmnnn :))

Porque?

Cássio Luiz:

E depois marque um dia com uma galera grande e jogue todas as cartas sobre nós

Porque eu quero ver uma chuva de sentimentos

Jandir Jr.:

Uau

Ei, e você não poderia fazer isso?

Cássio Luiz:

Não… Eu quero estar na chuva.

Por isso é um pedido

Jandir Jr.:

Hahahhaha você é foda amigo

Você me encanta

Cássio Luiz:

Ahahaha, pq isso?

Jandir Jr.:

Porque eu nunca ia pensar nessa resposta

publicar textos sobre as exposições que monitoro, investindo contra o estigma em que se desconsidera intelectualmente qualquer enunciação de certxs trabalhadorxs sobre o contexto que xs emprega

Dentro

Programa Sala de Encontro: Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro Abertura: 25 de março de 2017

Jandir Jr.

Foi por ter-se percebido em um museu, e não percebido o museu e somente ele, que Paul Valéry iniciou um pequeno texto assim: “Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso”*. Da primeira metade do século 20, este escrito, O problema dos museus, tem as críticas que Valéry dirige ao museu com base em sua própria vivência quando visitante: no aviso que o adverte a não fumar ali; em alguém, um funcionário, que lhe retira a bengala quando na galeria; nas obras-primas que convivem próximas demais para que seus olhos as possam fruir sem que se perca algo de suas raridades quando sozinhas. É no corpo então que urge o embate com o museu em sua breve crítica, e, longe de uma discussão sobre métodos museológicos − apesar de implicado nela −, o impeditivo ao contato delicioso com as obras é que é visto em sua urgência; na vontade documental que o museu tem para com a obra-prima, sua presença enquanto maravilha se retrai de algum modo, e o exercício do espectar torna-se superficial, já que menos sensível.

Entender o museu como problema para a obra − perspectiva própria de uma primeira modernidade que reivindicou a autonomia da arte ao mesmo tempo em que tomou o museu como plataforma de localização do artístico na instância pública − baseou algumas elaborações que a tomaram por questão ao longo do último século, por vias que ora rechaçaram a instituição museal, ora se deram nela mesma: em seus modelos  arquitetônicos em que a autonomia da obra de arte pôde figurar, na emergência da curadoria como abertura a critérios outros ao do museu em sua ânsia universalizante, na crítica institucional e, em tudo isso, na reelaboração do museológico em si, desde em seus conceitos norteadores até em seu aporte expositivo. É aí, nessa senda, que a exposição Dentro pode ser localizada.

Mostra inicial do programa Sala de Encontro, primeiro projeto do novo diretor cultural do Museu de Arte do Rio, Evandro Salles, Dentro se dedica à aproximação do público com a arte por meio da fruição e do engajamento em atividades que devem ser realizadas em seu interior, onde convivem obras de tempos distintos, mas que não se fazem vizinhas por zonas de contato históricas; são seus aspectos mórficos que norteiam vizinhanças, lhes apontando interstícios, o que evidencia suas contiguidades, e apelando ao que se denota em uma fruição primeira, a mais tátil possível. Assim, como o antigo Busto de São Jorge (primeira metade do século 20) carrega em seu peito um espaço vazio em formato circular, que traz a atenção para as reentrâncias de madeira em seu interior, uma pequena gravura de Mira Schendel, no outro extremo da sala, traz em si Círculos concêntricos com 4 pontos (1973), pequenos, dispostos entre seus espaçamentos, dando algum protagonismo aos intervalos entre as linhas circulares. De Waltercio Caldas, Sempre (1967) é composta de quatro sequências de um grid de pregos na parede em que também se dispõem, de quatro formas diferentes, quatro fios elásticos pretos amarrados em formatos retilíneos. De modo análogo ao que os pontos produzem na gravura de Mira, há alguns pregos que sobram, soltos, sem amarrações, que fazem não só os espaços ali vazios se alçarem a uma condição de visibilidade até então impensada − como se, anterior a eles, vazio fosse sinônimo de invisível − como esses próprios pregos solitariamente penetrados na parede nua reluzirem, potenciais em sua condição de hipótese ao elástico já tensionado. Há ainda outras fotografias, pinturas pequenas, instalações centrais, trabalhos organizados modularmente, que evocam incessantemente seus vazios estruturantes. E o design de exposição em Dentro, composto por tablados em que se pode apoiar, grandes acolchoados e carpetes disponíveis para o corpo, livros da biblioteca do MAR organizados em dégradé, junto às obras que mencionei, torna o lacunar adentrável. Trata-se de um encontro sensível com o objeto artístico, para além de sua dimensão cognoscível e conteudista.

É curioso, contudo, que a abertura da Sala de Encontro em sua primeira versão tenha sido coincidente com o decorrer da exposição Lugares do Delírio, terceira e última parte do eixo curatorial Arte e Sociedade no Brasil, projeto de Paulo Herkenhoff, anterior diretor cultural da instituição. Nesse eixo, dedicam-se às exposições aspectos prementes do social: a moradia, a educação e, nessa terceira mostra, a loucura. É previsível, então, ainda que Sala de Encontro e Arte e Sociedade no Brasil compartilhem o anseio pela democratização da arte que norteia o Museu de Arte do Rio, que Paul Valéry se sentisse mal localizado em uma das exposições de Herkenhoff, já que, em sua tomada dos objetos expostos como indícios sociais, nas tais mostras o contato privilegiado e mavioso com uma obra não era primordial, porque não fundamental ao cumprimento da tarefa dialética necessária à constituição de uma crítica que articulasse as obras ao tema que as conjugavam ali, em  exposição. Todavia, menos preciso que com Arte e Sociedade no Brasil, resta incógnita uma possibilidade: se Valéry não se seduziria por Dentro; como se sabe, ainda que Sala de Encontro faça a conjugação museológica de obras que Paul Valéry tanto repudiou, suas preocupações se encontram habitando o museu, na vontade do contato inaugural do sujeito com o objeto artístico,  indagando o que mesmo algum visitante indagará quando um espólio vier a seus olhos pela primeira vez, como o Capacho (2016) que reside no chão de Dentro, obra de Dias & Riedweg, em que está escrito: O que fazemos aqui?

Nota

*Valéry, Paul. O problema dos museus. ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12: 31-34 , dec. 2008. ISSN 2178-0447. Disponível em:  . Acesso em: 30 abr. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200003.

Publicado na Arte & Ensaios nº 33: Impalpável, em 2017.

starbizu . <stella.arbizu@gmail.com> qua, 14 de mar de 2018 às 17:18

Para: Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com>

Querido,

Segue aí.

Estrada dos Bandeirantes, 11744 qd D cs 1

Vargem Pequena – Rio de Janeiro

CEP:  22783-111

Besos.

S*

Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com> sex, 23 de mar de 2018 às 13:14

Para: starbizu . <stella.arbizu@gmail.com>

Brigado pelo endereço, stella. Que coisa curiosa, né? Nós aqui, enviando e recebendo nossos enderecos de caixa de

correios por um correiro virtual. A intenção primeira não era menos virtual, a de compartilharmos nossos endereços

por um site de sorteio de amigo oculto. Com certeza significa bem menos mandar cartas hoje do que quando as

cartas nos eram a única forma. Hoje, só mesmo um exercício para uma disciplina poderia retornar urgente enviar e

receber essas mensagens nos correios.

Lembrei de uma carta que nunca soube se chegou. Seu conteúdo já não importa. Era para um desconhecido, tinha

algo que gostaria que ele guardasse como um tesouro, mas o envelope voltou. tinha um carimbo que dizia que o

endereço não foi encontrado. Abri a boca de outro envelope, pus esse dentro do novo e reenviei, ou enviei, caso o

pensemos como uma nova carta. Passou um tempinho e ele voltou. O mesmo carimbo, a mesma casa que não era

vista. Um envelope maior ainda; aquele que voltara dentro desse; envio o reenvio pela terceira vez. Não voltou, mas,

realmente, nunca soube se chegou.

E-mails que remetem à cartas mais físicas me fazem lembrar desses envelopes envelopados. Guardo um pouco de

carta nesse obrigado virtual, que também imprimirei e enviarei praonde cê mora. E fico em dúvida, seduzido por me

permitir a dúvida de qual chegará primeiro, email ou carta. Como se pudessem competir numa nova velocidade, que

na verdade sempre lhes será a mesma: uma dentro da outra.

Beijão.

Té já ,

Entre meu lado de cá e a imagem do que lá está, há um vidro. O sei por tudo o que não lhe transpassa transparente, pelo vidro ser opaco somente na gordura das peles que lhe tocaram, em nossa umidade que nele se tornam gotículas, num pequeno filete de luz que se disperse por sua superfície ou lhe produza reflexos daqui, sendo que nas bordas, onde o vidro dobra deste lado àquele, seus vértices à mostra me dizem do quão espesso é, o que também finda sua transparência.

Mas se as bordas estivessem disfarçadas em molduras discretas, se não o embaçássemos respirando rente a ele, se a luz fosse propícia a não fazer espelho ou prisma, se nem um mínimo grão de poeira lhe aderisse, só o perceberia se, crendo no que ele silenciosamente cindiu, lhe tentasse atravessar sem o saber; como quando fui criança num museu sem andar com as mãos dadas às da minha mãe e corri em direção a algo espetacular que já não recordo, tal o impacto do meu corpo na cúpula que o rodeava.

E agora eu mesmo trabalho em um museu. O que me diz, pela proximidade, que já não há risco de colisão.