De jandir jr.

Para rafael amorim

É difícil recordar como. Quando há memória em mim só lembro dela abaixando o short e mostrando a buceta. Me impressionava a cor vermelha, o molhado dela, toda a carne fora. Tiro por cima do elástico da bermuda. Nem lembro se eu já sabia estar muito duro. Tentávamos meter na varanda, a frente da casa onde, segundos depois, minha mãe gritou com ódio. Bem depois, horas depois ainda, a mãe disse que alguém passou e nos viu do lado de fora. Olhou pra ela ao lhe ver chegando, distraída da foda, no corredor que dava pra rua, o outro lado donde estávamos. Demonstrava vergonha em trocar esse olhar cúmplice, essa pessoa desconhecida. Já não sei quais foram os primeiros olhos que nos viram: os de mãe, nesses olhos anônimos, ou os anônimos, na frente daquela inocência toda nos olhos dela.

Eu queria botar na boca. Por iniciativa, quem pôs foi ele. E ele queria sentar um pouco também. E eu não quis. Chegamos a nos tocar juntos, uma mão só. A gente gostava. Quase deitando em mim, escondido, escadas bem altas no seu prédio. Havia conhecidos dizendo que era viado. Você anda com ele por quê? Nós nos vimos lá na varanda um dia. Conversas sobre animes. Tentou entrar sua mão na minha bermuda. Na varanda alguém nos veria. Eu não queria, mas soou como se eu não quisesse nunca. Agressivo me esquivei. E virar o rosto, não atender, privilegiar uma garota, dar desculpas. Sem nunca saber quais os primeiros olhos que nos veriam.

Há o medo de dizer as histórias que seriam o motivo do negar. Nunca ocorreram: era o que nunca precisaria dizer. Mas agora, aqui, são as provas do quanto sou patético, de como falho na empatia com o outro, de como desconheço algum tesão, da minha casa: limite das brincadeiras, de como sou explícito quando gostaria é de ser transparente. E isso se ocorreram assim realmente. Mas na dúvida, nessa dúvida, já hão suas existências.

Rafael, tenho minhas histórias pessoais a parir da sua obra. O espelhamento das duas, a recorrência da mesma varanda, o espelho em que encosta a marimba que pende. A fragilidade da sexualidade é a fragilidade de toda heterossexualidade. A pedra quebraria o vidro. Mas repousa nele, e só. O que me veio como um Iembrete.

Obrigado.

 

Rafael Amorim <amorimrafael.belasartes@gmail.com>

5 de fevereiro de 2019 19:49

Assunto:  uma espécie de rede

 

Boa noite, querides

[este e-mail é um convite]

estou enviando este e-mail ao grupo de jovens artistas, curadorxs, produtorxs, etc que considero meus pares nessa jornada da arte contemporânea como resposta às nossas urgências, mas mais que isso, gente: estou envio este e-mail para pessoas de quem realmente me sinto próximo e à vontade para discutir sobre trabalhos, processos e tudo o mais que muito provavelmente a gente já partilhou em algum momento. Seja nas salas de aula, no bandejão, no transporte público, em exposições, na mesa do bar.

Como a maioria de vocês sabe, esse ano finalmente defendo meu tcc, sob orientação da Dinah e minha pesquisa continua tratando de uma poética do contato com o outro, tendo o território urbano e o cotidiano como principal metodologia.

Não um Outro com “O” maiúsculo, um outro ideal… mas um outro em paridade com a gente, um outro que existe e responde às nossas questões, um outro em estado de constante troca e que também habita o lugar do eu.

Bem resumidamente e para que esse e-mail não fique maior que ele provavelmente já vai ficar, resolvi apresentar no tcc três disparos conceituais que desenvolvi durante a minha pesquisa para tentar propor quais linhas conectam meus trabalhos: Cidade-equívoco, Ancoragem emocional e Terreno baldio.

Muito disso tem a ver com o germe de mundo, pseudônimo que uso no instagram há pelo menos dois anos e que aparece para mim como afetação de uma das principais autoras que consulto para estruturar minha pesquisa: Suely Rolnik. Para ela, o germe de mundo seria essa negociação do corpo do sujeito com os afectos externos. Mas que para mim tem surgido como agente que opera modificações no mundo com elementos do próprio mundo, ou seja, o germe de mundo numa pretensiosa visão minha seria o sujeito como modificador da própria realidade: artistas, curadores, poetas…

Dito isso, vocês são os meus e os seus próprios germes de mundo, instauradores de mundos. E onde isso entra em minha pesquisa?

Quando comecei a delinear a bibliografia, não queria construir um tcc onde utilizaria somente psicanalistas, filósofos e antropólogos para justificar meu processo de arte.

Fui para textos de artistas falando sobre arte e quis ir mais além: como estou propondo uma poética de contato, de paridade e do outro, me vi cheio de desejo em construir uma experiência de bibliografia em rede, em que os meus pares falassem sobre meu trabalho, entender a importância de um artista em formação referenciando outrxs jovens artistas (essa nomenclatura que a gente ama usar) em seu trabalho de conclusão de curso.

O convite é também um desejo de que tudo o que a gente troca dentro ou fora da universidade, nos cafés e cervejas que tomamos, nos áudios que enviamos, seja material crítico sobre nossas próprias produções a engrossarem as redes que construímos. De modo que eu possa citar, por exemplo, BENJAMIN, Walter e BRAGA, Camilla na mesma página, MANHATTAN, Agrippina e CLARK, Lygia no mesmo capítulo.

Por ser uma tentativa de algo ainda pouco trabalhado no formato de tcc, minha pesquisa ser bastante auto referente e ainda não haver uma data para a defesa, deixo muito aberto os formatos e meios que esse material vá chegar até mim, caso aceitem o convite.

Penso como um possível prazo para ter o máximo de material, o fim de março. Talvez seja uma possibilidade e contaria com a disponibilidade de vocês.

Além disso, para auxiliar, estou enviando no anexo um recorte mais específico do meu portifólio como uma unidade de partida na pesquisa. Sei que nem todo mundo conhece os trabalhos como um todo, nem todos acompanharam o início desse processo lá em 2014, mas espero que com o portifólio seja possível disparar algum interesse no processo de escrita de vocês e que isso sirva de combustível para que possa contar com vocês no meu último ciclo dentro da graduação.

Deixei alguns trabalhos de fora e isso foi intencional, o que não significa que eles não aparecerão na versão final do tcc. A escolha de não trazer ao portifólio as performances “Entre pares” e “Primeiro trauma”, a série “O lugar das re-existências”, a “Arte pão com ovo” ou o video “Testamento” foi para que não se tornasse um arquivo com um milhão de slides. Sendo assim, caso alguém queira falar de algum desses trabalhos em específico, como fez a Camila Vieira na Revista Desvio, sinta-se à vontade para situá-los da maneira que melhor sentir desejo.

A intenção é que seja uma escrita prazerosa, sobretudo livre e como acharem melhor: pode vir em forma de artigo, resenha, crítica, apontamentos, e-mail, carta, textão de facebook, áudio de whatsapp, convite para tomar uma cerveja para gravarmos a conversa, achismos, sob o viés que melhor couber, usando artistas vivos ou mortos para referenciar, críticos, filósofos, historiadoras da arte, psicanalistas, professoras, poetas, cronistas, vendedores de bala ou nenhuma referência.

Espero que meio ao heavy metal que tem sido a vida de todo mundo nesse 2019 insano, consiga a colaboração do maior número de vocês. Caso não role, tudo bem, também. Entendo a correria que é estudar, trabalhar, caçar um trampo que pague bem, escrever editais, cuidar de criança, virar a noite, terminar trabalhos da faculdade, passar maior parte do dia se deslocando, sobrevivendo de um modo geral.

Pronto, chegou o fim do e-mail e fico feliz de verdade em ter conseguido dar conta de tudo o que precisava escrever, o que venho pensando há algumas semanas e já havia comentado com alguns de vocês.

Felizmente também já tive a oportunidade de trabalhar, expor, curar, produzir e estudar junto da maioria aqui, então agradeço antecipadamente a atenção e o carinho que sei que dedicarão me enviando algo ou, àquelxs que não puderem, só em ler o e-mail até o fim e aparecerem no dia da defesa (que ainda será decidido).

Um beijo e muita coisa boa pra gente.

Rafael Amorim:

estudante/pesquisador/germe de mundo/em fluxo
http://cargocollective.com/germedemundo

Falta um pouco menos de um mês pra eu pedir demissão do mar, e me vem que não é certo que eu tenha um salário depois disso. Porcas promessas. Posso tentar fazer uns extras no museu, que tal? Trabalhar mais solto, ganhar pouco. Quem sabe não me sinta livre, mesmo que não? Pelo menos senti:

cavalo parado no pasto. Sem sela. Enquanto isso aguardo a soltura, penso em mim. E só.

(guardo aqui uma thread no twitter, de uma moça que foi estagiária de arte educação de inhotim em 2010. a @logalery)

 

Um like = uma treta da época em que trabalhei em inhotim

Trabalhei em inhotim por um ano, em 2010. Era estagiária de arte-educação e trabalhava no parque 3x na semana, atendendo escolas, visitantes. Meu salário era 200 golpes! Os mediadores recebiam R$800 e os arte-educadores um pouco mais de R$1.000.

2 – acho que pouca gente sabe que o Bernardo Paz mora DENTRO do parque. Ao lado da galeria fonte tem uma trilhazinha que se você adentrar poucos metros vai ter um segurança armado no meio do caminho. Logo ali atrás está a casa do Bê.

3 – teve um domingo que me designaram pra fazer uma visita com hóspedes do Bernardo e me levaram até a casa dele pra buscar o povo (jovem casal de investidores italianos) que na época iria investir no projeto de construir um condomínio dentro do parque.

4 – A casa do Bernardo parece uma das galerias, quadradona e toda de vidro, com uma piscina enorme na frente. na outra ponta da piscina tem uma obra da zhang huan que é uma estátua de ouro que bate num sino.

5 – Nessa visita com os investidores italianos, Bernardo também foi, e a única coisa que sabia falar em inglês era o valor das obras de arte. Passando em frente a galeria da Doris Salcedo ele começou a gritar muito feliz UON MILION DOLAR UON MILION DOLAR

6 – Fiz uma visita com um dos filhos do Bernardo e investidores de SP e quando fomos à Doris Salcedo o bonitão fez seu julgamento estético: essa aqui foi das mais caras mas é isso aí, não tem nada dentro.

7 – “sonic pavillion” conhecido com “som da terra” foi inaugurado enquanto eu trabalhava lá. Foi uma pesquisa que deu completamente errado, gastou-se muito mais que o orçamento inicial, foi impossível perfurar a profundidade planejada por conta do lençol freático. continua:

7.2 – Fizemos visita com um dos engenheiros ‘nada artísticos’ da obra que afirmou uma coisa bem óbvia: que os sons emitidos são muito mais microfonia, poeira, inseto, do que movimentação da terra.

8 – em 2011 o então curador ambiental pediu demissão e escreveu uma carta aberta para funcionários e comunidade relatando todos os crimes ambientais que inhotim cometeu durante a gestão dele. Eram páginas e mais páginas de crimes horríveis. Cadê essa carta gente?

9 – como todos os lagos do parque são artificiais de cava de mineração, são bastante marrons, então de tempos em tempos despejam um corante chamado “lagoa azul” na água. De vez em quando dava pra ver os patos cá bunda azul do corante.

10 – a água dos lagos é NOJENTA. Especificamente o que fica atrás do educativo tinha o pior cheiro, além de ter sempre um monte de peixe morto boiando por lá. Pode perguntar qualquer um que trabalhou no educativo alguns meses, vai ter trauma do cheiro.

11 – Não sei hoje em dia, mas na época Fernanda Takai tava volta e meia pelo parque. E sempre que ia algum global, eles passavam pra o educador mais ‘discreto’ e planejavam toda a rota das escolas e da estrela, pra evitar o encontro.

12 – Sempre tem noiva fotografando no parque. Os agendamentos são feitos com bastante antecedência. No dia da inauguração que participei em 2010, tinha uma noiva agendada a meses e esqueceram de cancelar com ela. Resultado: ela fez o book com o parque LOTADO

13 – No dia da inauguração, assim que cheguei, antes de tomar café, me colocaram num ônibus pra ir buscar gringo no aeroporto. Eu sempre me metia nessas furadas pq falava inglês. Esse dia foi HORRÍVEL.

14 – dia da inauguração eu não tomei café nem almocei pq fiquei nessa função de ir e voltar do aeroporto. Inhotim paga passagem pra galerista vir do mundo inteiro em dia de inauguração.

15 – no fim do dia eu tava SÓ O CACO querendo ir embora e não voltar nunca mais. Parte da equipe ficou no parque pra festinha after e rolou altos babados. Mas eu tava tão rancorosa que nem me ative as fofocas, mas muita gente pelada e cocaína, com certeza

16 – uma vez a globo foi lá fazer uma reportagi, e ensaiaram com a gente o que tinha que fazer e dizer HAUHAUHUA a maioria da equipe se recusou àquela palhaçada e até demissão acho que rolou esse dia. Mas sempre tem os aparecido ou obediente pra ir lá falar.

17 – rolou demissão também de uma menina que reclamou do lanche no facebook e taggeou o perfil do museu. Era início das redes sociais, por mais que a menina tenha dado muita bandeira, foi muito chocante na época.

18 – Essa treta eu não fui testemunha mas grande parte da equipe narrou a mesma história: durante a montagem da galeria Miguel do Rio Branco, Miguel, o próprio, esteve lá e foi um ESCROTO com toda a equipe, bem artista chiliquento.

19 – assim que Adriana Varejão deu um pé na bunda de Bernardo Paz, ele começou a pegar uma mocinha bem nova que tava trabalhando lá temporariamente. Acho que arquiteta do restaurante novo. Todos os dias a gente tinha que presenciar ele dando altos amasso na guria no meio do parqu

21 – Uma estagiária foi demitida por nadar na piscina do Jorge Macchi. Por muito tempo ela foi considerada uma grande heroína entre os estagiários. Hoje em dia a obra é aberta para o público nadar.

23 – tirei meia horinha do meu horário de almoço num domingo pra ver a Filarmonica se apresentando no parque. Tava lá de boinhas com uniforme, no que bate no meu ombro uma mulher que nunca vi na vida e fala: avisa meu marido que estou aqui (continua)

23.2 – pois não, quem é seu marido? Ela fez cara de indignada, e apontou prum filho do Bernardo Paz que tava a tipos 50m da gente. MANO VAI VOCÊ SUA LOCA mas eu fui la´avisar o cara, que ficou bastante constrangido com a palhaçadinha

24 -aniversário do Bernardo, galera organizou uma festinha bem fofa no prédio do educativo. Tava marcado prele chegar 16h, ele só foi chegar 17h (hora que o ônibus de funcionários tava quase saindo), pegou um microfone e de costas pra galera falou: obrigado bando de puxa saco

25 – na área de artes visuais todo mundo sabe que inhotim é pura lavagem de dinheiro e politicagem. Já ouvi em sala de aula “melhor lavar dinheiro com obra de arte do que com cavalos caros”. Mas ninguém OUSA falar nada em público com medo de se queimar

Um dos jardins mais antigos do parque de chama jardim burle Marx e todo mundo diz que foi o burle Marx que fez. Apesar de ser mentira ninguém desmente. O nome é do homenagem.

27 – nunca parei pra pesquisar mas corre a lenda que Bernardo paz enriqueceu dando golpe do baú em ex esposas

28 – na época da inauguração de inhotim, Bernardo fez um acordo com a justiça de parcelar em 300 anos sua dívida em sonegação de impostos.

29 – essa nova dívida que eclodiu ano passado, a proposta era pagar com obras de arte, que seriam mantidas no acervo do instituto. A proposta ainda está sendo analisada.

30 – todos os salários da área artística são ridículos até hoje. A galera fica lá só pelo status e sonho de ir pra outro lugar top algum dia

31 – tem gente da equipe de 2010 que trabalha lá até hoje e eu fico imaginando que essas pessoas devem estar mortas por dentro

32 – o prédio do educativo foi construído em cima de um lago e seu teto é a obra da yayoi kusama, que é um… Lago O prédio ganhou vários prêmios de arquitetura mas é um grande equívoco, explico:

32.2 a biblioteca fica num sanduíche de lagos e a torna a biblioteca mais úmida e imprópria para livros da história. O ar condicionado tem que ficar sempre liagdo no máximo pra não mofar tudo.

32.3 – o prédio é todo de vidro e fica lindamente camuflado entre os lagos e a montanha. O que faz com que passarinhos morram praticamente toda semana batendo de cara no vidro.

33 – tinha 2 ônibus de funcionários pra BH, e eu ia no menorzinho que nunca rolava fofocas. Ou seja, eu sei de quase nada das treta pesada que rolavam nos bastidores.

34 – dentro do parque tem (tinha?) uma fábrica de tijolos! Sempre achei isso bem bizarro mas é só isso mesmo…

35 – o parque foi construido em uma das cavas de mineração da Ferrous. A mesma que foi vendida pra vale ano passado por 550 milhões de euros

36 – praticamente TODO o investimento público e privado que inhotim recebe é via os projetos educativos. Ano passado vi uma vaga para educador, que exigia 3 linguas e pós-graduação na área, e pagava R$1.800,00 coitados, não tem verba né

37 – essa fonte é só minha cabeça mesmo mas acredito que com todo investimento publico e privado, alem das dividas de inhotim, fava pra construir ALTOS museus de arte contemporanea pelo país a fora, bem mais acessíveis

38 – ouvi dizer que quando sai escandalos de inhotim o instituto pesquisa a repercussão e a minha arroba já foi citada. Isso me intriga muito, pq só eu falo dessas treta? é de conhecimento GERAL

39 – um ano trabalhando lá e TODOS OS DIAS o café da manhã e da tarde era um pão doce com queijo e presunto, que eles estocavam na geladeira então era servido gelado e amassado. Nunca mais comi presunto desde 2010, muito raro.

40 – a experiência como educadora, no entanto, foi incrível mesmo. É um acervo muito potente com uma equipe educativa maravilhosa. O que faz com que seja ainda mais revoltante o descaso com o educativo.

41 – teve um domingo de páscoa que fui trabalhar e teve UM visitante no parque. pensa numa vontade de se jogar no lago. Dezenas de funcionários, domingo de páscoa, comendo o pior pão com presunto que vcs possam imaginar hahahaha

42 – apesar da minha ingratidão kkkk a única carteirada da minha vida é dizer ‘já trabalhei em inhotim’. Os olhinhos das pessoas até brilham.

43 – corria uma lenda também que na primeira inauguração o tunga nadou pelado no lado na frente da galeria dele

44 – adoram dizer que o tunga foi o amigo que convenceu o Bernardo a abrir seu incrível acervo ao mundo. Provavelmente quem fez isso foi algum advogado da família, pra limpar e blindar o sobrenome Paz

45 – vcs já devem ter notado, né, mas Bernardo paz é uma PORTA. é entende porra nenhuma de arte contemporânea, pode ver qualquer entrevista dele, é pura vergonha alheia

46 – a galeria da Adriana varejão é chamada de taj mahal pq né… Ela era casada com o Bernardo paz na época de sua construção. Pouco depois largou ele e se casou com uma moça. (adoro essa história)

47 – alias, em 2010, não sei se continua, era total uma empresa familiar. Todos os filhos e noras empregados. Galeria de esposa do dono e esposa do curador ganhavam mais destaque. Gente incompetente ganhando cargos mais altos quando faziam merda pq era amigo. Por aí vai

48 – o paisagismo do parque é como se fosse decoração de ambientes. Eles plantam e tiram árvore como se fosse um objeto. As vezes de um dia pro outro tinha um jardim totalmente novo no meio do parque

49 – eu tomei pavor desse tipo de paisagismo inclusive, vejo foto de inhotim hoje e acho tudo feio, pra mim parece todo de plástico

50 – coisa mais comum que tinha era grupo de senhorinhas que iam só pra ver o tal do vandario e morriam de decepção.

51 – uma vez rolou um casal alemão que estendeu um paninho na beira do lago e foi tirando a roupinha

Tem uma obra do zhang huan na entrada no parque sobre uma lenda de um homem que moveu montanhas. Galera tinha uma teoria que o Bernardo acreditava que aquilo era tipo um auto retrato, q ele era o homem da lenda q movia montanha

Hoje, ao bater o ponto, encontrei esse pequeno tecido bordado com essa palavra, mentiras, em cima do ponto biométrico. Não sei quem pôs.

André Vargas <andrevargasantos@gmail.com> 24 de janeiro de 2019 13:29
Para: “Jandir Jr.” <mailexpressivo@gmail.com>
Assunto: digerir
 

Digeri

Em verdade ingeri, mastiguei e engoli rapidamente tudo o que consegui ler de seu texto e, como num refluxo tardio, passei hoje por todo processo novamente. Talvez eu seja um boi e que, com meus dois estômagos, rumine cada palavra vasculhando sentidos e conexões, ou talvez eu só precise marcar na memória em garranchos o que leio, porque escrevo em garranchos feios, preciso da escritura bem cravada no tento para tentar outra vez escrever.

É sempre difícil escrever após ler, parece que não é mais necessário o empenho pela escrita que visitamos ao ler, esta tudo ali onde a escrita é espaço do não dito ou não escrito ou do impossível de se escrever e ler, mas está tudo ali nos espações entre palavras. Escrever novamente é repetir espaços entre palavras, no fundo endossamos o espaço abismal do não poder preencher completamente os sentidos com os sentidos que temos.

A leitura esgota tempo e palavra, porque tempo e palavra são a mesmíssima coisa e quando findamos uma leitura, findamos um tempo do mundo e iniciá-lo é restaurar as promessas e premissas, sempre não cumpridas, de que um novo mundo seja.

 

Antes de tudo, obrigado, amigo por me participar de sua vida!

 

Nunca te passei o texto do Nietzsche que disse que li sobre o conhecimento se dar no ventre e não na mente como se espera e indicam os neurocientistas, mas confesso que esse esquecimento é saudável em tudo nessa vida, veja bem, não o fiz de proposito, isso de esquecer, mas já que sucedeu dessa forma vamos acreditar que haja um propósito mesmo que não seja de propósito.

Tenho acreditado que precisamos incendiar toda a base de conhecimento do mundo para ver o que surge quatro, cinco, seis gerações após esse apocalipse epistêmico. Mas percebo, óbvio, que a força e a violência desse empreendimento não condizem com minhas formas pacifistas de empenho diplomático em vida e entendo as questões que nos trouxeram até aqui no que diz respeito a importância demasiada que a humanidade foi construindo à conservação e à tradição que quase se confundem, na versão mais corriqueira, com a ideia de cultura. Mas venho pensando que não precisa ser um empreendimento real, esse de destruir todas as bases do conhecimento humano, e nem sequer se trataria de uma experiência cientifica estrito senso, seria apenas a curiosidade operando suas ferramentas.

Curioso como deixamos termos como “curiosidade” de lado para nos colocar mais dominantes perante o mundo, para nos instaurar como humanos e poder manipular tudo e todos. No fundo de tudo isso somos somente seres curiosos que não acreditam mais na curiosidade e querem dizer-se sérios e espertos de suas vontades; somos crianças a abrir brinquedos descobrindo peças e mecânicas que nos iludem, mas fingimos ser adultos que entendem os truques do brinquedo. E mais, curiosa é toda a natureza, não somos diferentes, boa parte das ações no mundo se dão por curiosidade, deus é uma curiosidade, e eu sou curioso com o que surgiria na cultura depois de um colapso de esquecimento geral. Mas agora trato de um processo pessoal, o que surgiria de mim se eu conseguisse empreender o esquecimento como método? Esquecer e não mais digerir tudo isso que pensei conhecer, até aqui me lembro de Descartes em Meditações Metafísicas e um turbilhão de memórias do curso de filosofia, mas e se eu conseguisse esquecer disso também? O que surgiria?

Como você bem disse, amigo, Utopias movem e geram energia vital, mas nesse meu desvario reside ainda uma ideia fundamental àqueles que, como eu, passaram pela transição dos anos 1999/2000; a ideia de que é preciso acreditar que o mundo acaba e vai acabar sempre, e que todas as profecias estavam certas, para que sejamos criadores de um novo que não precisa, de forma alguma, ser diferente. Quando criamos voz, escrita, marca, entre outras tantas formas de contato humano, não só criamos um mundo novo como matamos muitos outros. O grego arcaico é uma língua morta, o chorinho é uma musica morta e, mesmo quando falamos grego ou tocamos o chorinho, ou estamos fazendo um novo, ou estamos restaurando uma múmia. Alguns dirão que as coisas se modificam, eu até acredito na mudança, no fluxo, mas, para mim, a cada pequenina mudança existe a morte, assim como a vida, mas precisamos dar maior valor à morte das nossas produções, porque a vida anda muito exaltada e a busca por imortalidade nos faz sintéticos em todos os sentidos.

Pode parecer que estou me distanciando das coisas que você assuntou em seu e-mail, mas escrevo isso para dizer que, diferente de ti, acredito em vanguardas, não aquelas vanguardas europeias ou europeizadas de escolas, tipos, normas e etc., mas acredito que haja vanguarda em todo ato, vanguarda vulgarizada mesmo e pulverizada em todo ente que se apresente no mundo: pedras, vegetais, animais…, já que interpreto que todo ato aponta a morte de outro em seu nascimento, todo ser cria e é vanguarda. Por isso é difícil escrever depois de ler. A condição primeira é que meu texto mate o seu de alguma forma e contra isso possuímos barreiras éticas que nos impelem a travar, mas não é só de compaixão que vive um obstáculo à escrita pós-leitura. Matar o seu texto é saber que o meu poderá ser morto também e ninguém deseja a morte, não do jeito que precisamos desejar.

Acredito que esse possa ser um bom caminho para abrir-se para uma escrita que não tenha intenções de universalidade, começar por desacreditá-la daquilo que a fundamenta: a permanência, a perenidade, a conserva, ou seja, começar por acreditar e desejar que a escrita morra e que não gere tradição.

Obviamente guardo-me a inocência e a leviandade com que trato esses assuntos, imaginando  obvio de trabalhos ostensivos que possam ter ilustrado-os mais profundamente, mas o que está mais perto muitas vezes é mais difícil de se ver. Estou escrevendo sobre o perto, tão perto que se confunde comigo. E quando te faço aquelas perguntas em nossas conversas andantes é porque as faço a mim, tão perto que se confunde comigo. Também não sei bem para quem, para que, para o que escrevo. E sinto as angustias de nem sempre ser sentido ou fazer sentido em minhas escritas. Sinto na diligencia das minhas palavras prediletas, por vezes, um descompasso com a minha expectativa de leitura e muito disso se resume, agora pensando a partir do que eu mesmo conjecturei, porque escrevo em língua morta. Talvez a poesia seja em si desde o início uma cerimônia honrosa e delicada de mumificação da escrita. É dalí para o sarcófago. E por isso o desconforto que ela gera. No medo de que essa língua morta se levante e que de suas ataduras horrendas surja um urro melancólico de prolixidade atormenta os vivos. mas talvez não, talvez a poesia seja também viva e morta, a depender do fingidor ser mais ou menos fingido, mas as minhas, ah, essas tem morrido, inclusive em mim, antes de sair, como verrugas dentro do ouvido ou espinhas internas na ponta de um nariz pronunciado como o meu. Preciso fingir mais.

De fato é um tremendo desafio, amigo e, na verdade percebo que você sempre se coloca nesse papel, e se dá bem, de confrontar as normas cristalizadas, cujas chagas estão expostas na fratura social em que vivemos. Sabe que torço para que você tenha ainda mais esse desafio ultrapassado com vivacidade e acredito muito na sua escrita, até aonde convém acreditar em escrita, ou seja, nos espações entre as palavras. Encontrar uma espécie de equilíbrio entre os seus desejos com a escrita acadêmica parece ser uma tarefa para se deixar levar pela curiosidade, destruindo o brinquedo para que ele morra e em seu lugar você consiga fazer outro, não com as mesmas peças, mas enxertando pedaços de si que sei que farão do brinquedo algo melhor já que perderá a mecânica e ganhará em vida.

E sobre o Tretiakov e sua factografia, um estrangeiro só deixa de ser estrangeiro quando não tem passagem de volta. E você, meu caro amigo Jandir, não volta mais, você é o próprio campo em que corre o chamado à sua intelectualidade. Não precisa temer que não consigas mudar com esse mestrado, enquanto vivos somos só a mudança para a morte e você só está no mestrado porque já mudou. Só não endureça em demasia a sua língua, deixe-a mole para que ela não corte suas delícias sem saboreá-las (pensar na digestão em demasia é esquecer do gosto e lembrar de azias) e não deixe que certa ânsia poética te transforme num embalsamador de língua morta, procure no que a escrita é cura, portanto no que ela é mortal, porque é no que ela é mortal que ela esta viva, o imortal está morto. Perceba, escrevo “ao amigo Jandir”, mas estou dando esses conselhos para mim, porque está tão perto que se confunde comigo.

Podemos continuar conversando se você quiser, porque provavelmente deixei muitas questões no vácuo…

 

 

 

 

e isso nem de longe parece um final bonito de e-mail.

 

Abraços,

André Vargas

De: mailexpressivo@gmail.com

assunto: revista

Oi,

Eu tenho uma vontade para esse ano. Uma revista. Chamo de revista, mas na verdade a penso mais como um zine. Tamanho A5, preto e branco, papel sulfite e poucas páginas. Na sua capa, porei somente um texto. Assim:

Esta revista não tem um nome. Suas páginas não possuem imagens. Ainda assim, carregam textos de pessoas que trabalham com artes visuais. E eu a distribuo nas ruas. Eis sua primeira edição.

Minhas intenções são a de estimular colegas, tão das visualidades, em seus textos narrativos. E a de que considerem durante a redação ou escolha do texto a ser publicado as condições em que será difundido: distribuído gratuitamente, por mim, em poucos exemplares, para uma maioria que não têm contato com as artes visuais cotidianamente. Desencastelar a escrita sobre arte, pô-la fora das academias, das leituras especializadas, de certas paredes. É o que quero.

E gostaria de um texto seu. Mas como são minhas primeiras edições, não sei sobre limite de caracteres, prazo, coisas assim. Por isso só lhe digo que quero muito um texto seu, e nada mais.

(aqui entra um parágrafo informal à pessoa que escolhi, pontuando minhas impressões sobre o que escreve, o porquê a quero tanto nessas páginas)

E é isso. O que acha?

< 3

Meditava quando ouvi a sua voz. Posso incomodar um pouco a sua concentração, irmão? Abri meus olhos e um sorriso. Lhe reconheci, e ofereci minha mão à dele. Observei em seu braço já tão próximo as marcas na pele castigada. Marcas que vinham de dentro. Manchas e rugosidades que implodiam seu corpo. Estava pior do que antes.

Koé, irmão. Falei sorrindo. Apurei meus ouvidos à sua voz. Pouco recordo. Ele hesitava, ponderava antes do pedido que eu previa. E me adiantei a dizer Poxa, eu não tenho dinheiro quase nenhum. Pô… você não tem, né? Não. É que eu ia pedir pra você inteirar uma quentinha pra mim. É, cara. Janeiro tá bem pesado pra mim. Saquei. Mas brigadão, cara. Deus te abençoe. Cê também.

Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com>                                  18 de janeiro de 2019 11:19                 Para: Mariana Paraizo <paraizoborges@gmail.com>

que precioso poder ler sua descrição sobre seu próprio tcc. essa continuidade entre casa e instituição de ensino universitário nunca me ocorreu, mas te ouvindo falar, realmente: parece que é o ponto central de onde cê fez tudo o que fez durante a defesa. copio aqui embaixo o q cê disse. é algo que preciso guardar.

Daí eu te vi falando sobre a autoproclamada pesquisa academica artistica e o reconhecimento da instituicao e essa coisa do tcc continuar sendo feito no ate entao processofolio – e isso m lembrou a coisa estranha q foi defender meu tcc em casa. Mas acho q no meu caso nao foi ultrapassar uma barreira, acho q foi apontar pra algo em latencia: a continuidade d uma pesquisa artistica no caso  d um país colonial como o nosso mts vzs se dá pelo suporte em casa, pela vida no público que é dotado de eixos no doméstico e no familiar, no investimento familiar mesmo d estrutura, ja q a universidade publica hj mal tem esse suporte. mas pelo seu apelo vc conseguiu, e vc relata isso e a gente sente a tragédia, mas a gente sente a secura da tragédia e a desnecessidade de um ponto de tragédia pra uma vida que é uma barra, a barra de quem tá efetivamente marginalizado, e q assume esse papel, mas q assume os desejos tambem, enfim, conflitos.

acho q a minha graça no meu tcc foi desvelar um pouco essa distnção e mostrar que é tudo parte de uma continuidade, no Brasil. rua/insituticao/casa pra quem tem privilegio é uma coisa só, ate pq tem gente que atropela e mata na rua e sai impune – e quem tem privilegio tem prisao domiciliar, né. eu acheguei a te mandar? agr n sei, mas s vc quiser ler m avisa q eu mando. se n quiser, td bem, mas euj mando msm assim kkk

a rua difere da casa no q exige d posturas porém é lugar reflexivo (acho q ela é até meio abaixo hierarquicamente, onde vivemos, pq a lei vem da casa grande e seus agentes andam por ai) – e a casa tem aquela materia da rua tambem, materia no sentido social, q a casa reverbera as estruturas sociais e os arquetipos e parametros coloniais. enfim, nsei como e eu teria q entender melhor isso, mas eu m vejo qrendo dissolver um pouco mais as barreiras pra ver ate onde o limite esgarçae pra possibilitar novos caminhos de retorno (pq a gente sempre acaba voltando, neuroticos). e acho q, no fim, penso um pouco nas institucoes como casas no nosso país.

e mais: tem o vídeo em que você rouba as pessoas dentro da sua própria casa. tem aquele chá que cê tomou, feito de caixa de papelão, ela mesma uma casa pra chaleira que era guardada ali: mais um objeto do lar. a lembrancinha do abre alas, pano de prato.

dá pra entender agora porque há tantes artistas recorrendo a arquivos pessoais em suas produções. fotos antigas, textos da vó, dentes de leite. a casa dá subsistência pras práticas de arte. é o mármore. só não reparava que ela também, com isso, dava subsistência pras pesquisas em arte. seu tcc, seu email aqui, me atenta pra isso. obrigado, mari linda.

já em meu tcc… é ótimo ler seu email. fico tão feliz do seu carinho e de receber sua atenção.. que me faz acreditar que faço alguma coisa ao escrever. que bom que tenho esse privilégio de ter uma leitora tão sinistra comigo!

me vem que ele, meu tcc, é feito de pedaços díspares. ao ler você, percebo que os textos mesmo que estão ali são de momentos tão diferentes que a forma de escrever muda. e nessa forma de escrever, só vou reparando como ainda não me vejo satisfeito.

recentemente tenho vontade de me tornar um contador de histórias. um contador de histórias precisa apurar os ouvidos também. então talvez sejam duas as vontades: a de contar e a de estar atento ao que pode ser uma boa história.

nisso, tenho vontade de amalgamar a essa vontade à prática artística e a pesquisa em arte, como se fossem uma só, num tripé.

leio ensinando a transgredir, da bell hooks. uma contadora de histórias, falando sobre a academia e os incômodos em fazer dela um trabalho mais ativo. amo ela. nela lembro disso, conceição evaristo.

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.

escrevivência, é claro, e termo que nomeia a escrita de negras. homens seriam capazes de escrevivência? brancas, negros(,) mestiços, outres que não as mulheres de pele escura? não estou convencido disso, seu texto me diz de outras coisas. mas há aqui ao menos inspiração. talvez até mesmo no sentido de quem respira para depois expirar. minhas histórias, mesmo que só escritas, que incomodem os sonos injustos. deem o fôlego, ou lhe tirem.

bell hooks incomoda os sonos injustos. ali, como professora, acadêmica, sem se demitir de sua posição como mulher, e escurecendo maravilhosamente o mundo, dando-lhe sua noite digna. pela pele preta. contando as histórias.

ela fala sobre entusiasmo, e acho que é isso que gostaria.

unnamed

entusiasmo… não sei, mas associo entusiasmo a essa forma tão apaixonada dela em contar suas histórias. em escrever desse jeito. em falar até de suas referências como parte de algo fundamental para ela, ao invés de mais um trecho excertado, órgão retirado do corpo.

tô numa meio afetado com tudo isso.

fora isso, lembro da mesa com bolo do vira voto, de como acho que elas deveriam estar nas ruas desde a redemocratização. de como tentamos correr atrás de algo que já estava por demais perdido a essa altura, da eleição óbvia de bolsonaro.

lembro de eleonora fabião, indo pras ruas, querendo conversar sobre qualquer assunto com qualquer um, munida das suas cadeiras de casa e de uma plaquinha. só. e que toda a magia estava aí.

nisso me lembro que já não faço visitas mediadas no museu com objetos, propostas performáticas, tinta guache, nada disso. que gosto de conversar. e quando consigo conversar com o grupo, de verdade, fazer dele um fórum, uma arena de comunicação não violenta, quando vejo nele os anseios mais anunciados em todos os textos e discussões sobre mediação que li, vejo a coisa feita.

quero conversar, escrever como quem conversa. ou melhor: escrever e conversar como quem age. como parto das artes visuais, quero escrever e conversar como quem faz arte. e quero que isso seja pesquisa em arte. minha pesquisa. simples assim.

(mas como é difícil)

penso num curso, queria dar uma disciplina de metodologia da pesquisa que fosse, na verdade, como uma oficina de carros. me inspiro no rafael zacca, na oficina experimental de poesia, que você conhece bem.

uma contrametodologia da pesquisa. mas não sei

no mais, pode mostrar o tcc pro lucas, que ainda não conheço.

me manda o seu também!! eu te pedi até

me escreve mais

acho que a leila danzinger é uma das artistas mais importantes pra mim. desde que cruzei com o que ela fez. e ainda assim um mistério: como é tão bom aquilo tudo?

brigado

: )

Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com>                                  18 de janeiro de 2019 20:40                   Para: Mariana Paraizo <paraizoborges@gmail.com>

ahhh <333!!

só mais um ps: lembrei desse trecho que enviei à um tempão pra ti e mais umas pessoas. lembrei ao escrever sobre: “entusiasmo… não sei, mas associo entusiasmo a essa forma tão apaixonada dela [hooks] em contar suas histórias. em escrever desse jeito. em falar até de suas referências como parte de algo fundamental para ela, ao invés de mais um trecho excertado, órgão retirado do corpo.”. acho que por isso ele encontra oportunidade melhor aqui que naquele contexto, aberto demais. ; )

As aulas, tão propícias à formulação de uma verdade abstrata e metafísica, não parecem sê-lo ao tema da ternura. Há vários séculos a ternura e a afetividade foram desterradas do palácio do conhecimento. Os professores, como se dizia do grande Charcot, atuam como autênticos marechais de campo, seja no momento de enunciar sua verdade ou quando se aprestam a qualificar a aprendizagem. Desde as precoces experiências da escola, adestra-se a criança num saber de guerra que pretende uma neutralidade sem emoções, para que adquira sobre o objeto de conhecimento um domínio absoluto, igual ao que pretendem obter os generais que se apossam das populações inimigas sob a divisa de terra arrasada. Símbolo deste modelo de conhecimento é a forma como se acede ao estudo da vida vegetal ou animal, seja com herbários onde as plantas aparecem murchas e mutiladas, ou através da vivissecção e do dessecamento de animais. Toda interação com a vida que nos rodeia passa por sua destruição, como se a única coisa dos outros da qual nos pudéssemos apropriar fosse seu cadáver. A ciência, com seu esquematismo alienado da dinâmica vital, nos fez crer que só podemos conhecer o outro decompondo-o, uma vez detido o movimento, metodologia que aplicamos diariamente tanto na pesquisa biológica como na social, estendendo-a além disso à vida afetiva e à nossa relação com os outros.

é de um cara chamado luis carlos restrepo, dum livro seu chamado direito a ternura, que encontrei abandonado num shopping uma vez. é maravilhoso o livro. sorte das poucas.

e eu fui eu quem ganhei um email maravilhoso!! (adorei sua fodicina kkkkk melhor nome). quero saber mais sobre como foi. acho super importante esse trabalho da pina, quero conversar com ela sobre também…

no mais, muito amor e gratidão, mesmo.

Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com>                                  19 de janeiro de 2019 07:52                   Para: Mariana Paraizo <paraizoborges@gmail.com>

Que foda, não conhecia essa carta entre eles! E eu preciso ler preconceito linguístico, desse marcos. Pra dissertação. Que bom saber dessa sua história com ele!

 

Jandir Jr. <mailexpressivo@gmail.com> 7 de janeiro de 2019 22:14
Para: André Vargas <andrevargasantos@gmail.com>
Assunto: digerir

André.

Nós já nos falamos. Escrever para você é um fingimento em certo ponto, no que tange à novidade. E se já sabemos que iríamos nos falar, se lhe avisei: vou te mandar um e-mail, cara!, o que temos então é essa possibilidade de adentrarmos em nossas interioridades, por nossas escritas, para falarmos mais e melhor do que falamos um ao outro quando usamos as palavras que nos saíram pelas gargantas. Escrevo para você, eu percebo também, na esperança de uma resposta sua, e aí na possibilidade de lhe guardar. Quem sabe ter você um pouco, nisso que pode ser documento, que pode ser por mais tempo. Ter um pequeno e-mail seu.

Mas mais que só e-mail, seria ter o seu texto. A força de uma redação só se faz quando assumimos como um lugar de realização aquilo em que escrevemos. Podemos redigir um bilhete dizendo que compramos o arroz, para pedir qualquer por favor, mandar um e-mail e avisar o pormenor burocrático. Mas certo texto, e o seu texto, amigo, esteja onde estiver, transpassa o papel, já não é mais tinta, caractere, não é suportado por algo e, por isso, pode se dar em qualquer lugar. Bem sei pelos e-mails que já pude receber seus. Textos que surgem sorrateiros e que não precisam das páginas gloriosas de qualquer livro para se fazerem. Até nos formulários em que escrevemos no nosso trabalho burocrático. Até neles eu sei que se pode ver que você é poeta.

Você redige na página dos dias. Vejo em você que é possível escrevermos banalidades com pungência ou beleza. Ou até que isso é inescapável a certas pessoas, em que suas vidas não são só onde se fazem apêndices seus fazeres em arte. Mas confesso que digo isso pelos próprios interesses que estão em mim. No momento, em muitos momentos, você sabe, aprecio esses textos que surgem rasgando o dia a dia. Quero escrever assim. E por isso sou de toda admiração por você e por quem eu vejo nisso. E mesmo que não se enxergue dessa forma, aprendo olhando para sua anotação qualquer, seu comentário jocoso no intervalo do almoço, seu gaguejo, trocadilho, os refrões que canta enquanto caminha a esmo, que me instruem mais vezes que suas obras, seus poemas, músicas, seus livros publicados. Devo dizer isso.

É a convivência, claro. No passar das semanas, suas obras de arte não se prestam à convivência com tanta disponibilidade quanto seus pequenos atos corriqueiros. Ou são suas obras tantas no cotidiano… como seus escritos que são postos no chão, nas bancadas de trabalho, em tantos lugares. O que falo talvez seja então de certa qualidade no que você redige no curso dos dias, que o faz destacado na ordem ordinária. E essa qualidade, que me possibilitou usar o nome poeta para lhe nomear no segundo parágrafo, acredito nomeável novamente. Há força artística, isso é o presumível de tudo que falei. Mas há teses que se lançam enquanto sua rima ruma, e cabe falar delas ao ler você, quando lhe penso em trabalho teórico, em pesquisa, com referências e hipóteses emergindo dos seus rompantes, associáveis tão de pronto à manifestação artística e só. Mas isso, novamente, diz mais de mim, seu leitor, do que sobre você. Preciso me falar um pouco então.

October. 118. Uma publicação do MIT Press. Evidente que este não é meu nome, mas gostaria, por um momento, de me chamar Sergei Tretiakov. É quem segue registrado nas páginas desta revista, que me escapa por ser paga, distante e por não estar disponível online de todo.

Olho então suas páginas prévias no site da The MIT Press Journals. Enfrento o inglês munido do Google Tradutor. As páginas que carregam textos de Tretiakov seguem ocultas para mim. Só posso observar poucas introduções, redigidas por outras pessoas, e somente um artigo na íntegra, que fala sobre Tretiakov pelos termos de uma pesquisadora. Mas nada redigido por ele mesmo me é legível.

No DuckDuckGo então digito seu nome, e encontro alguns artigos em espanhol. Dois me chamam a atenção, um deles também escrito pela mesma pesquisadora que vi na October. Observo que cada um deles aborda certa fase da produção de Tretiakov, o que me dá a sensação de que encontrarei ali, neles, alguma clareza. E decido seguir por esta trilha que se abriu.

Mas é só em um, o único de outro autor, que encontro uma tradução de algo que Tretiakov mesmo escreveu. Você sabe, nós conversamos sobre os escritores soviéticos em seu movimento factográfico, que nomeava seus interesses em construir suas fortunas textuais em documentos, diários, crônicas, epístolas, e não em gêneros ficcionais como o romance. O que ocorre é que houve uma chamada para intelectuais e artistas irem aos campos, os koljós, para que ajudassem no desenvolvimento agrícola na União Soviética. “Escritores aos koljoses!”, era a frase de chamamento oficial. E aí se instalou uma incerteza entre eles. Houve quem encarasse o chamado como a tarefa de descrever o que acontecia fora de seu entorno urbano. Outros, por observar que escritores pouco sabiam sobre a produtividade das fazendas, iam retratar a vida cotidiana e só. E ainda havia os que se viam como detetives, investigando se os camponeses não estavam subvertendo suas tarefas, construíndo porões, desviando recursos. A convocação aos escritores tinha força emotiva, o tom era panfletário, mas as instruções sobre o que deveriam fazer não eram precisas. Fazia parte do primeiro Plano Quinquenal de Stalin, dedicado a uma industrialização urgente e coletivização forçada, em uma sociedade em que nem escritores estavam minimamente interessados no trabalho de base campesino, nem trabalhadores rurais ficavam felizes pela estadia de uma intelectualidade burguesa que se fazia ali mais como convidada de honra que como força de trabalho produtiva. Mas Tretiakov encarou positivamente o trabalho nos koljós, como um passo adiante na amálgama da intelectualidade soviética às massas. A convocação dos escritores aos koljoses coincidia com seu afastamento dos ideais factográficos. Era o momento em que Tretiakov pensava em como se fazer um escritor operativo. Sua fase operativa desejava ir além da escrita dos fatos, da não-ficção. Desejava que a técnica literária encontrasse lugar dentro do processo produtivo da sociedade soviética. E os koljós foram oportunos para pôr essa fase em prática, ainda que em menos de dez anos após o início dessa experiência, no stalinismo, lhe tenham aprisionado e condenado à morte por fuzilamento, pela acusação de colaborar como espião da inteligência japonesa, o que nunca se comprovou para além de sua confissão forçada, semelhante à tantos casos nesse período.

E aí estamos frente à descrição que Sergei Tretiakov redigiu sobre o que fez durante estadia em um koljós. Como deu vazão ao projeto operativo? Está descrito: planejou criar uma creche, participou das reuniões cotidianas, contribuiu com seu dinheiro para comprar tratores, facilitou a comunicação cotidiana entre os locais, discutiu, ajudou a entenderem passagens de leituras difíceis, aprendeu sobre cultivo e colheita para entender melhor esses coletivistas, foi anfitrião de visitantes, criou ofertas culturais para a comuna, atuou na educação, fotografou, montou debulhadoras. E também organizou a publicação de periódicos locais, escritos pelos trabalhadores.

Burocrático. Podemos pensar dessa lista. Mas Tretiakov se via como plenamente imerso no processo coletivo dali. O tempo foi passando e ele se tornou mais crítico a sua posição como especialista, percebendo que todas essas atribuições não necessitavam estar centralizadas nele. De qualquer forma, o que me toca é como as atividades em que ele se envolveu para dar conta de inserir-se como escritor dentro da produção no koljós fez com que ele se visse em outras práticas corriqueiras, como um administrador, um educador, um síndico, um agitador. Ao contrário da revolução moderna do objeto artístico, em que artistas investiram para que suas obras adentrassem em si mesmas e convocassem sua autonomia em relação a qualquer outro contexto que não o da fruição imediata, certos escritores soviéticos preocupavam-se em como atender, com suas práticas, ao projeto maior de constituição comunal. Em outras palavras, em como trair sua posição de classe burguesa, deixar qualquer interesse da arte pela arte, e fazerem algo pelo projeto soviético com o que escreviam. A esta questão, respostas tão disparatadas quanto o realismo socialista e a escrita operativa foram dadas. E hoje nós vemos tais respostas serem reensaiadas em nossa sociedade, por movimentos talvez até alheios à curta história soviética, como na persistência das escolas e cursos de belas artes, sustentados e conectados com a admiração popular por elaborações artísticas hiper-realistas, ou por coletivos, artivistas, práticas de mudanças sociais dentro da arte contemporânea, diluições de autoria nos fazeres em arte e até na elaboração liberal da ideia de estética relacional por Nicolas Bourriaud. Me sinto parte desse segundo grupo, dissensual e por vezes conflituoso.

Não é por uma posição política que retorno a Sergei Tretiakov. Me entusiasma ver algo que não foi reencenado por nossa sociedade nisso tudo que ele e tantos outros escritores fizeram, animados pelos desafios na União Soviética. Caminhamos nos rumos da modernidade, tudo em que estamos é fruto da nossa ida ou crítica nos sulcos da modernidade artística. Enfrentamos o deserto estéril que nós mesmos criamos, o abismo entre o que fazemos e a sociedade maior, nossos mundos pequenos, nossa plêiade, mesmo que uma plêiade de revoltosos, que marcham calçados em pantufas. Eles, escritores soviéticos, talvez nunca tenham conseguido o mínimo sucesso reconhecível com relação a atuar como escritores operativos, ou como escritores dos fatos, ou como condutores das massas. Mas suas premissas desde o princípio partiram disso: de constituir um projeto muito maior que qualquer produto final que saísse de suas mãos. Faziam um bloco de países ao escreverem, um projeto de globo, era isso que os animava. E por me ver em uma missão por deveras maior do que eu mesmo e minhas pequenas mãos, me interesso por eles.

Daqui há pouco estarei me matriculando em um mestrado na UFF. Uma linha prática, você já sabe. Em que desenvolverei um trabalho sobre a forma da pesquisa em artes visuais; em como artistas, e sobretudo eu mesmo, podemos e temos feito mudanças nos formatos da pesquisa acadêmica. Daí encontrei Tretiakov enquanto ainda lia para as provas de admissão, e me encantei. Primeiro pela factografia: em como via semelhança com minha ânsia até então um tanto sem porquês em fazer um arquivo de mim e só, abandonando qualquer outro investimento mais matérico em minha carreira como artista. E, mais recentemente, em como pensar no escritor operativo, no autor como produtor, me fez entender que quero que meus arquivos sejam não só documentos estéreis, rastros do que fiz, mas que sejam eles mesmos atos no mundo; cartas endereçadas cortando a opacidade dos dias; palavras faladas em meio à cidade, sussurradas nos ouvidos desconhecidos enquanto as gravo com o celular; alguma posterior memória. Coisas assim, ainda sem muitas decisões claras sobre o que quero com o que assumo para mim, me fazem entender que desejo escrever minha dissertação não como um texto coeso e único, mas sim composto de fragmentos, dia a dia, dos meus arquivos, e-mails, falas, cartas, documentos, que coincidam sob o tema da forma da pesquisa. Por isso, o que escreverei, e como escreverei, são respostas que me faltarão até a última linha da monografia. E se por um lado esse é meu programa, por outro me angustia de certo modo: quero planejar alguma responsabilidade para com o mundo. Quero decidir como escrever, e com isso decidir para quem escrevo, com quem escrevo, para o que escrevo. Por isso você recebe este e-mail, André.

Você quem me disse sobre a ideia de Nietzsche em digerir as referências que nos vem, torná-las parte de nós mesmos ao exibirmos o discurso. Falou disso de modo que, quando fui perguntar sobre, mencionei como se fosse ideia sua, não dele. Rimos disso. E agora até hesito: como não faço ideia de onde saiu isso que você leu, já não sei se falo de Nietzsche ou de você ao dizê-lo. Suas preocupações, quando falou disso publicamente, diziam respeito a como nos preocupávamos em citar de onde vinha o que dizíamos, ao invés de esquecermos por ora disso e oportunizarmos tornar outra, em nós, qualquer citação. Esquecermos por ora que Foucault disse aquilo, para ver o que Foucault disse, quem sabe, se transformar.

Assumirmos na língua eximida qualquer responsabilidade pela gênese do que dizemos é tomarmos em nós a possibilidade de falarmos com a leveza dos que disseram pela primeira vez. E como dar a leveza merecida aos que realmente falarão na academia pela primeira vez? Lembro do susto que tomei ao ver como funcionava a academia: sua intertextualidade babélica, seu preciosismo formal, sua erudição encastelada, refratária a qualquer das inocências dos que estão no primeiro período de faculdade. Soma-se a isso a condição de afastamento de gênero, classe e raça dos que só há pouco acessaram as universidades e pronto: se faz uma linha de separação que produz quem terminará o curso e quem não, quem concorrerá as melhores vagas e quem estará aquém delas. Em artes, há ainda as formalidades sobre os trabalhos acadêmicos em determinadas disciplinas e estágios da graduação e pós, que parecem totalmente estrangeiras à elaboração arrojada da arte contemporânea, e que realmente o são, já que são outra demanda, vinda de toda a estrutura universitária no país, esteja ela incutida na mentalidade docente ou coagindo-a à adequação, via repasses e pontuações.

Mas digo disso tudo porque me transformei. Já não sou o que entrou na faculdade no primeiro período, informado pela mídia popular e pela igreja cristã, distante do capital cultural. E, com isso, deixei de escrever como escrevia antes. Isso, se é por um lado a tomada de perspectivas que já não respondem ao ambiente conservador em que pobres vivem ideologicamente, por outro é a prova que adquiri certos hábitos verbais, vícios de fala, que me fazem, sem nem mesmo eu o querer, distinto da maior parte da população que não adentrou o ensino superior, para além das distâncias discursivas implicadas por minha área específica, as artes visuais. E como minha dissertação será escrita aos quatro ventos, e não só nas páginas monográficas, preciso saber como escrever de outro modo.

Como escrever a cada vez de um jeito? Como mudar a voz de acordo com a quem eu me direciono? Como me transformar? Cada vez mais, entendo que não conseguirei sozinho; que isso será possível na medida em que eu investir em me transformar pelo contato com toda diferença. Artista-pesquisadores aos koljoses! E como fazer como você, André? Fazer do que escrevo meu ato, a arte, uma hipótese, tudo ao mesmo tempo? Como?

Já discutimos um pouco a forma da minha pesquisa. Isso eu ganhei de você. Andávamos um ao lado do outro, peripatéticos, e você me questionava como conciliar essa minha vontade por ação direta do texto com a necessidade de escrever tanto no mestrado. Como fazer com que fosse lido um texto grande em condições tão adversas, por pessoas não necessariamente dispostas àquilo, como nossos orientadores e banca estarão. Lhe falei que acreditava em endereçamento para que os textos fossem lidos; se escrevo para você, por exemplo, acredito que você lerá o que escrevo aos montes mais facilmente do que se fosse um texto sem destinatário. Mas sei: eu preciso pensar na recepção. Meus leitores não serão universais, isso não existe. Desejo combater o texto universal acadêmico ao escrever assim na academia. Escrever de modo menos universal… é o que quero.

Você também me perguntou se não temo deixar de ser artista ao entrar tão fundo em motivos de ordem intelectual. Claro, não faço jus às palavras como você me disse. Mais digo de minhas impressões residuais quando ouvi você. E eu disse que não devemos fugir, me lembro. Somos intelectuais, ocupamos essa posição em nossa sociedade: graduados, pós-graduados, artistas, privilegiados por sermos vez ou outra contratados como trabalhadores da intelectualidade. Intelectual já se é quando aqui, onde estamos. Mas quando ansiamos mudar a técnica da pesquisa, da escrita, do exercício profissional como intelectuais, instigados como os soviéticos estiveram, eu digo: ainda que longe da identidade como artistas, estamos fazendo como artistas fizeram, como certos escritores fizeram. Ao não fugir de uma responsabilidade pública como artista-pesquisador, trazendo as discussões para o modo como se faz, como se posiciona na sociedade, como adentrar no processo produtivo social, fazemos como artistas; mudamos ao sabor do nosso próprio programa, ainda que este nos leve para longe do que o consenso diga que é arte. Mas já estamos longes do que o consenso diz que é arte, não é? Não pintamos quadros realistas. Isso é tudo para estarmos em um grande fora, que ainda assim pressiona todos os dias a mentalidade dominante.

E quando nos perguntamos se tínhamos medo de parecermos vanguardistas ao nos apropriarmos de referências e modos de dizer como o que faço com Sergei Tretiakov? Quase dissemos em uníssono não, seguido de muitas risadas. Realmente, não temo ser visto como um inocente que ainda crê em vanguardas. Não creio em vanguardas, mas creio na energia que há no que fizeram. No modo como se permitiram mergulhar de modo apaixonado em suas crenças. Utopias servem para caminhar, já vi o Galeano parafrasear isso uma vez. E por isso caminhamos. Retiramos energia desse horizonte inexplorado para seguir. Algo assim há no que chamávamos de vanguarda enquanto conversávamos.

Mas eu temo uma coisa, André. Eu realmente temo entrar e sair dessa pesquisa como o mesmo. Não mudar nada, ou mudar pouco, permanecer como tudo que vejo por aí. Permanecer ilhado em mim mesmo, ter jogado essas palavras e impressões que disse todas ao vento. Quero terminar isso tudo tendo algum ensaio do que pode ser uma pesquisa em arte que discuta sua própria forma, seus parágrafos, suas pontuações. Mas é fundamental que isso tudo corrobore para uma dissertação que, sobretudo, seja uma ação no mundo. Uma não, várias. Que se espraie ao meu redor como qualquer coisa que ainda não sei. Não há porque eu renegar esse caráter em algo de todas as pesquisas que são feitas em instituições como a que adentrarei; todas essas dissertações artísticas se tratam de atos no mundo, assim como o que desejo fazer sem nem mesmo saber o quê. Mas é que eu gostaria que a minha dissertação fosse toda ela fora dela; que cada letra, cada capítulo que seja, para além dos docentes e discentes com quem ela entrará em contato, fosse para alguém. E que suas escritas fossem então o próprio ato artístico.

E você me disse que nunca escreveu dentro da academia, e que por isso não tinha tanto a dizer desse ponto de vista. Pois então lhe digo que esse e-mail que lhe envio, sua leitura, sua possível resposta, seu silêncio, tudo isso será constitutivo de um dos capítulos de minha dissertação. Confesso: estou curioso, André. Como você escreverá seu primeiro texto dentro do ambiente acadêmico, aqui, nas suas reticências ou palavras  a esta missiva que lhe envio?

Por fim, me desculpe meu tom. Sei que escrevo de forma que não é natural para nossa comunicação cotidiana. Sei que assumo um modo de escrever quase que em monólogo. Como disse, é que ainda em mim vivem os vícios e os modos de ser que aprendi ao entrar na universidade. E me posicionei aqui como quem escreve uma dissertação, ainda. Me cabe mudar para o que quero ser. E tenho alguma esperança que ainda aprenderei ao observar você.

Obrigado.