Em cada caso particular, em cada poema ou obra, o ensaio acha um mundo a ser explorado, um mundo cheio de mistérios e desafios, um mundo que o chama a pensar. Ele não procura apenas integrar esse particular em alguma categoria geral, mas achar a sua idéia. Sua verdade, como indicou Benjamin numa bela imagem, “não se manifesta no desvendamento e sim num processo que pode ser caracterizado como um incêndio, no qual o invólucro do objeto, ao penetrar na esfera das idéias, consome-se em chamas, uma destruição, pelo fogo, durante a qual sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade luminosa”.

Trecho de Pedro Duarte em Ensaio de linguagem ou linguagem de ensaio. O tachado na palavra ensaio foi feito por mim. Este trecho está aqui como um lembrete para meus próximos dias. É que não penso exatamente em ensaio ao lê-lo. Penso em
Thích Quảng Ðức.

JANDIR GOMES DOS SANTOS JUNIOR

A FORMA DA PESQUISA

Resumo: Nesta pesquisa, pretendo investigar a própria condição da pesquisa em arte, na convivência que propicia entre a forma e o discurso. Isso a partir de meu arquivo pessoal, disponível em processofolio.tumblr.com, para o qual reivindico caráter artístico e de pesquisa desde 2015. Quero ver o que é em mim ao pesquisar em um arquivo de mim mesmo; desde interferências de raça e classe em meus usos intelectuais até afinidades com discussões, trabalhos e dissertações sobre a relação entre arte e universidade, interessadas em o que pode vir a ser uma pesquisa artística e seus métodos de trabalho.

Palavras chaves: pesquisa; arte; universidade

 

Apresentação do tema de pesquisa

Uma dissertação, em artes visuais, feita por mim. A escreveria pensando em artistas ocupando graduações, mestrados, linhas de doutorado, se deparando com certas regras, empecilhos às muitas expressões. Pois, reconhecidas algumas distâncias improdutivas entre práticas artísticas e acadêmicas, viu-se pessoas adequando-se, assumindo binômios como artistas-pesquisadores, ou forçando os códigos, suportando alguma sabatina das bancas, de quem lhes orientava e, num sentido inverso, dos circuitos que crescentemente desconfiam de alpinistas da intelectualidade, das elites, dos sábios.

Esta monografia então desejaria como mais um sôfrego fôlego aos escritos que forçaram os códigos. Como eu mesmo escrevi um trabalho de conclusão de curso à época da graduação pelo qual precisei defender e suportar desconfiança, cheguei a vontade de, partindo do que eu mesmo fiz, anotar algo sobre este assunto. E claro, sempre defendemos nossas monografias. Cabe, todavia, assumir que nem todas as pessoas defendem a forma de suas pesquisas. Do conteúdo já sabemos de antemão a fragilidade. De quem o escreve, sabemos a dor desde quem suicidou por conta das pressões universitárias. Cabe falarmos do continente; das pontuações, usos gramaticais e espaçamentos pelos quais monografias mataram nelas mesmas a autoridade do discurso universal, perante um júri das formas.

Também daria início a esta dissertação desejando que ela fosse minha última; que fosse uma espécie de destruição de mim mesmo, de toda vontade de pesquisa, já que imagino ela, mesmo sem a escrever, como onde residiriam os rastros de minhas tentativas falhas como um pesquisador. Penso-a como testemunho do porquê era falho tudo o que empreendi nos momentos conclusivos da minha curta vida acadêmica – o que a faria, portanto, como o monge vietnamita Thích Quảng Ðức quando se imolou em chamas nas ruas de Saigon, em 1963, e foi iconicamente registrado por um fotógrafo chamado Malcolm Browne. Mas é esta monografia que eu assumo numa auto-imolação; a mim mesmo caberia uma resignação cômoda: me vejo sem o vigor que um monge desses teve e que meu trabalho ousaria ter. Sim, sou eu quem o escreveria. Mas ele mesmo testemunharia contra sua própria existência, contra sua força enciclopédica. A mim caberia a calma da distância, do testemunho de um último trabalho que escreveria numa universidade, e um longo caminho pela frente, aquém de toda a academia.

A verdade, contudo, é que eu não garantiria minha vontade em deixar de seguir. Não posso dizer convicto “nunca mais” porque, difícil que foi chegar até aqui, não me escapa pensar no que é comigo ao desejar o pós-graduação. Todos os erros de português condenados por aqueles professores negligentes para com a posição socioeconômica de seu alunado são meus. Estudei em escolas públicas, subúrbios, zona norte, vivi e vivo numa família de baixa renda, trago uma família negra do Rio Grande do Norte comigo, dois estrangeiros que se apaixonaram, empobrecidos, e sobreviveram nessa cidade são meus avós. As formas das pesquisas, na emergência das ações afirmativas, carregam marcas de estilo que transcendem qualquer elaboração quasimoderna, quasivanguardista. Gostaria de falar sobre isso também. E na tentativa de um mestrado e sua escrita, tentarei aqui.

Objetivos, justificativa e hipótese

Mas não sem antes apresentar meu trabalho de conclusão na Graduação em Artes Visuais com Ênfase em Escultura, que cursei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Devo falar que era em 2016 quando vi o tempo de escrever uma monografia se aproximar. Já conversava com a professora Beatriz Pimenta Velloso, de quem me fiz orientando, sobre escrever, e ela recomendava que eu olhasse mais detidamente o meu conjunto de trabalhos em arte, onde inclusive vislumbrava ela tautologia em meus métodos, como um norte possível para meu recorte. Mas eu mesmo desconfiava de todo critério: tudo o que tinha feito parecia tão pouco e tanto perante a ânsia das palavras-chave que segui-las se fazia uma tarefa dolorosa.

Essa desconfiança era espraiada em toda minha postura: na mesma medida em que galgava novos e maiores lugares expositivos para um jovem artista formando como eu, me via mais desconfiado, e mais esnobava toda possibilidade de carreira. Conhecia mais pessoas, mais aumentava minha rede de trabalho, mas ia deixando pouco a pouco tudo para trás. E fui aos poucos desistindo de submeter inscrições em editais, reconhecendo minha falta de paciência com como as pessoas privilegiadas ao meu redor pensavam, abandonando meus trabalhos em espaços públicos, em lixeiras, os esquecendo por aí.

E comecei a fazer um portfólio fraturando sua linguagem usual. Numa pesquisa de meses a fundo, dei início a um só documento que organizava todos os resíduos materiais que eu pude considerar de gestos meus. Eram vitais; começava com minha certidão de nascimento, de 1989, e seguia.

desenhos que realizei quando criança, minha assinatura em 1997, uma carta que recebi do programa Daniel Azulay em 1999 por enviar um desenho ao seu endereço, as primeiras fotografias que realizei, em 1998, durante uma excursão com minha turma da Escola Municipal João Marques dos Reis ao Jardim Botânico, pinturas e desenhos que realizei no software paint em 2006 e 2007, uma série de imagens que criei com o primeiro scanner que comprei em 2009, desenhos realizados, durante meus expedientes de trabalho, com caneta esferográfica e grafite sobre papéis provenientes das bobinas das impressoras fiscais que eu consertei de 2008 até 2010, ano em que pedi demissão e comecei minha relação com o ensino superior em artes, pinturas ruins, fotos das bandas em que toquei, trabalhos de arte e outros gestos dos quais me orgulhei

O terminei, em 2015, prometendo em sua última página que não faria mais um outro portfólio. Foi o momento que coincidiu com quando criei o que chamei à época de processofólio. Tendo desistido dos portfólios, das carreiras, dos trabalhos, tendo abandonado o Facebook e Whatsapp, ilhado em mim mesmo, sem algoritmo algum daqueles que determinam nosso relacionar nas redes sociais hegemônicas, queria pôr fim também ao modo usual de organizar a memória do que fiz, ainda que conservando um pequeno fio que unisse essas informações arquivadas ao campo das artes visuais. Das notas de rodapé de meu primeiro trabalho de conclusão de curso, o seguinte trecho:

No dicionário Aurélio, encontramos a expressão “porta-fólio” que significa pasta de cartão usada para guardar papéis, desenhos, estampas. O sentido que damos ao portfólio é similar. Trata-se do registro da trajetória de aprendizagem do aluno. O termo portfólio nos remete a GARDNER (1995), que o define como local para armazenar todos os passos percorridos pelos estudantes ao longo de sua particular trajetória de aprendizagem. O autor explica que a palavra não é suficiente para expressar a extensão do conceito, acreditando que “processo-fólio” seria mais adequado. (PERNIGOTTI et al., 2000)

Portfólio e processofólio, quase sinônimos no campo da educação, me pareceram termos passíveis de assumirem papéis diferentes quando em arte. Portfólio é palavra corrente no universo artístico, e já fala por isso de volumes encadernados, páginas alvas com poucas imagens, pouco texto, tecendo uma linha narrativa provisória sobre um só artista em suas folhas. Enviada por correios e e-mails, atende as demandas por profissionalismo na apresentação das práticas sensíveis que alguns têm aprendido a chamar por produção. Processofólio, por isso, inaugura um sentido não novo para o que vemos num portfólio desses, mas dormente, entranhado em suas letras. Pois entendi o inerente ao ato de documentar-me ao usar esse nome: a dimensão processual de mim posta em meus arquivos. E daí foi fácil realizar esse documento de apresentação de meus trabalhos de forma diferente. Uma linguagem diarística foi tomando lugar à precisão seca das legendas usuais; a ausência de imagens de registro não mais configurou um defeito de documentação; os lapsos na minha memória, reelaborados pela autoficção, deixaram de ser falhas. Tomando consciência que o esforço documental pode ser labor do artista, reconfigurei as lembranças do que eu inventava, aquém da colaboração com curadorias, instituições, incisões historiográficas de agentes maiores que eu. A face de um arquivo assumidamente pequeno ia então tomando protagonismo em meus esforços.

E de modo que os limites se borravam, vi a ideia de trabalhos separados ruindo pouco a pouco ali. Já não mais documentava uma e outra coisa que havia feito, mas via uma crescente arquivação das hesitações do meu fazer, dos projetos, dos esboços, das ideias inacabadas. Via a resolução de trabalhos finais, de obras de arte, cederem espaço à indeterminação, em anotações sobre o medo de ser incoerente, sobre desistir de algo, por aí. E nisso, minha própria edificação como autor, como edifício sólido donde se erige um corpo de criação, vacilava e caía por vezes; às certezas projetuais sobrepujava-se uma ode ao fracasso como outra beleza possível; a própria centralidade na arte como assunto ali perdia razão. Nesse contexto, a pesquisa acadêmica em artes confortavelmente apartada da prática artística cedeu lugar em meus interesses. Foi daí que comecei a criar meu primeiro trabalho de conclusão de curso.

Lhe intitulei como Notas de rodapé dos textos publicados no site http://processofolio.tumblr.com/ Acesso em: 10 jan. 2016. Nele constava uma pequena introdução de três páginas e, logo após, uma longa sequência de páginas quase em branco. Ocupadas com notas de rodapé ora mais longas – até quase a metade da página -, ora curtas – em uma linha -, possuíam grandes espaços vazios suas folhas. Essa sequência era interrompida somente pela bibliografia utilizada, ao final do trabalho; extensa demais para tão poucas palavras. É que essas notas de rodapé e suas referências, como o título já indicava de modo seco e descritivo, eram referentes a entradas dessa minha documentação, quando eu ainda a chamava de processofólio, não de arquivo.

Reconheço que já ali, entre 2015 e 2016, redigia essa monografia com uma posição pessoal: a de que meu arquivo era uma pesquisa em arte, ainda que fora de forma, já que me permiti formulá-la num novo formato, pensando em pesquisar, de modo autônomo, a mim mesmo no que fazia. Entendia que elaborava e discutia a prática da pesquisa em arte não só como um conteúdo, mas em sua plástica. Isso se fazia claro pela própria argumentação de que me utilizei à época na apresentação de meu trabalho de conclusão:

O que proponho com estes problemas que trago à banca examinadora e para outros possíveis leitores é a construção de uma pesquisa que, habitando lugares distintos – internet e monografia -, coexista. Apesar da descontinuidade entre estes dois registros, afirmo com tal dependência entre escrito e site  que eles compõem juntos um texto coeso, o que atribui a este documento, pela solução que aqui emprego para vinculá-lo ao site, qualidade artística, que, por conseguinte, atribui ao http://processofolio.tumblr.com qualidade dissertativa. (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 7)

Atribuir ao documento que eu criava caráter de obra de arte era a única forma que encontrei de deixar anotado meus motivos em elaborá-lo daquela maneira. Por reconhecer que era artista ao pesquisar, justificava daquela maneira a subversão da forma da pesquisa, numa elaboração plástica da monografia. Mas o nó, a complicação, se dava não somente naqueles poucos papéis encadernados. Ao arquivo, até então processofólio, uma nova camada se sobrepunha pelo impresso:

E, mesmo tendo destacado acima meu Trabalho de Conclusão de Curso enquanto trabalho artístico, se faz necessário rememorar que todo este, em seus dois lugares: site http://processofolio.tumblr.com e impresso nessas páginas, assim como em seu caráter artístico, é a inscrição de um processo de pesquisa e escrita expandida; um Trabalho de Conclusão de Curso que continua a ser escrito. Na medida em que http://processofolio.tumblr.com está em processo, suas notas de rodapé ganharão novo e outro caráter documental com as mudanças do site. Um documento como este atualiza o interesse em seu conteúdo quando confrontado com o desenvolvimento de seu referencial. (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 9)

Houveram problemas de recepção do tcc por parte de minha orientadora. Mas a monografia foi amplamente elogiada em minha defesa final. Foi aprovada com nota máxima, ainda que com percalços, dúvidas em relação à potência de sua continuidade – se eu conseguiria fazer dela uma dissertação, uma tese, uma carreira. Beatriz, minha orientadora, pontuava suas preocupações com o trabalho quase como preocupações comigo mesmo. E havia algum rejubilo em mim ao ouvir aquilo: era como se eu tivesse ultrapassado uma fronteira até então desconhecida entre pesquisa e autobiografia. O que se justifica pela última citação que fiz, anterior ao parágrafo acima. Meu arquivo, se é um trabalho de conclusão sendo escrito até hoje, tem seu caráter como pesquisa acadêmica, ainda que autoproclamado. Mas, pela aprovação da defesa de suas notas de rodapé, carrega alguma validação institucional consigo nessa proclamação. Cruzam-se então em meu arquivo o método de pesquisa e as demandas do autobiográfico, da autoproclamação; acidentes do dia a dia que modificam os textos de si ao sabor do presente de sua própria escritura.

Por isso não escrevo uma pesquisa somente ao ambicionar realizar uma dissertação em artes visuais. Um tcc já escrevo ao escrever desde tanto tempo um arquivo. Por isso também não escreverei um último trabalho; por meu arquivo ter sido irreversivelmente ligado à pesquisa acadêmica em arte, já não faz sentido buscar escapar das universidades. Poderia escapar de ser seu corpo discente ou docente, mas não de minha relação fundamental com a pesquisa como uma constituinte do que faço. No entre que é a prática artística e sua documentação quando eu escrevo sobre mim mesmo, o caráter acadêmico, inevitável, se vê reformando-se, ainda que pelas bordas, pelas ações periféricas de um tcc que ousa se escrever indeterminadamente.

Tendo dito isso, posso voltar a falar sobre o que eu gostaria de dizer em uma dissertação, já que agora reconheço que ela, hipótese lançada neste projeto, e mesmo este projeto, são parte desse mesmo arquivo, desse mesmo tcc.

Metodologia

Eu gostaria de dividir a escrita desta dissertação em mais quatro capítulos, feitos de futuros excertos do meu arquivo, que abordariam:

– as vezes em que escrevi errado na academia, correlacionando à isso escritos sobre a realidade colonial de nossa relação idiomática (KILOMBA, 2016), além de escritas desviantes, em Pretuguês (GONZALEZ, 1984), chicanas (ANZALDUÁ, 2009) e informadas pelos abalos do queer na linguagem inclusiva (BENETTI, 2013). Já que sei o que assola a intelectualidade de pessoas negras (HOOKS, 2017), por reconhecer em mim essa coletividade racial, cabe aqui reconhecer que até meus próprios desvios linguísticos, involuntários em boa parte das vezes, descentrados de minha consciência como autor, subvertem formalmente a estrutura idiomática hegemônica – e, por consequência, qualquer redação acadêmica que eu faça. A partir daí, como outro ponto de partida, verei em paridade comigo uma resenha experimental da Mariana Paraizo (PARAIZO, 2017), nos semelhantes e diferentes porquês de nossas fissuras linguísticas, quando subconscientes ou quando não;

– os trabalhos que me influenciaram a realizar meu primeiro trabalho de conclusão de curso: a dissertação de Fabio Morais (MORAIS, 2013), a monografia do Igor Vigor (VIDOR, 2010) e da Maíra Dietrich (DIETRICH, 2011). Sobre cada um deles, os sintomas problemáticos sobre separar prática e pesquisa quando em arte (REY, 1996), no que suas soluções informaram minhas soluções à época da graduação e, sobre o tcc da Maíra, correlaciona-lo com os esquecimentos de Montaigne ao escrever seus ensaios (MONTAIGNE, 1972) e com um trecho de Molloy (BECKETT, 2014), que, ao descrever uma pesquisa incuriosa, suponho servir como parâmetro a quem pesquise em arte, recorrentemente acusável pelo rigor ou falta dele em seus métodos;

– ainda sobre a discussão do rigor na pesquisa em arte, traria um debate sobre a relação conflituosa entre a pesquisa em arte e a universidade, no que estarei com exemplos dos debates suscitados nos expedientes da revista Trópico e do livro Meio como ponto zero – metodologia da pesquisa em artes (BRITES, TESLER, 2002). Sobre isso, na pesquisa em arte, o método é que é posto à prova por quem a critica, como se não seguisse a investigação com devoção – comprometida que é com a prática artística -; como se não fosse curiosa o suficiente. Falarei sobre preguiça então, pensando com o crelazer (OITICICA, 1969) e com Emil Cioran e suas reflexões sobre trabalho e preguiça (CIORAN, 2012);

– e a dissertação do Gustavo Speridião (SPERIDIÃO, 2007), a primeira que li e me fez pensar que era um trabalho muito diferente dentro da academia, graças à seu tom literário. Nisso, trarei algumas poucas coisas que tenho visto sobre o ensaio e a escrita acadêmica (ADORNO, 2003) (LUKÁCS, 2014) (DUARTE, 2007), irei lê-las, a cada uma discutindo a existência de reminiscências literárias em trabalhos pretensamente científicos, especulando sobre uma inescapável presença do artístico e sua insubordinação metodológica nas mãos de quem escreve o conhecimento.

Cronograma

Levando em consideração um período de dois anos para a conclusão do Mestrado e sua dissertação, divido aqui em semestres o cronograma esboçado. A redação da dissertação transpassa todos os semestres por entender que, sendo um trabalho que ocorre informado pela constituição de meu arquivo, terá entradas de escrita ora mais formais, ora menos formais, como se a própria dissertação – arquivo que é – fosse também seu diário de campo. Há ainda períodos previstos no segundo ano para a editoração da dissertação; pretendo trabalhar conjuntamente com algum profissional da publicação impressa para dar formato à monografia. Uma forma de encarar este trabalho como obra; evidenciar seu trânsito entre prática e pesquisa artística.

– Primeiro semestre: redação; leitura, levantamento e readequação da bibliografia inicial;

– Segundo semestre: redação; leitura, levantamento e readequação da bibliografia inicial; formatação da primeira monografia para a qualificação da dissertação;

– Terceiro semestre: redação; pesquisa para editoração da dissertação; finalização da pesquisa bibliográfica;

– Quarto semestre: finalização da redação; editoração da dissertação; defesa.

Foi o tal do Molloy quem disse que o que faz a paz de um pesquisador incurioso é saber não poder saber nada? Não sei. Mal comecei a ler esse livro. A Mônica que me mandou um trecho por mensagem. Mas tenho que confessar que esse lance de pesquisador incurioso me seduz, no sentido de me pensar como um desses, apesar de estar com dúvida se me faço um pesquisador incurioso ao não ler bem o que cito ou se tenho apenas preguiça, ou se me propor a escrever a partir de algo que li mal me faz ainda assim um pesquisador, ainda que pouco curioso.

E por que um pesquisador? Por que eu não poderia ser outra coisa que um pesquisador ao escrever pensando no que mal li? Na verdade me parece que eu poderia mesmo, e que defendo esses escritos como pesquisa por algum interesse nublado, por alguma semelhança com o estranho fato do Molloy (será o Molloy?) carregar em seu bolso um objeto que nunca revelará sua própria razão como um edifício bem assentado; daí decorre que só saiba não lhe saber nada, o que é uma conclusão, e uma conclusão socrática, pelo que falam por aí. Mas me parece que até a conclusão mais óbvia doa em sua própria morte, no ponto final que é, a vida de uma tese porvir.

Não querer saber nada não é nada. E acho que já é evidente que não quero tanto assim ler o livro, e que por isso não carrego comigo a paz que só não ter a menor chance de saber algo sobre Molloy me daria. Mas é que…

Montaigne – escrever sem lembrar

Eu – escrever antes de saber

Escrever antes da leitura minunciosa

Estado voluntario de ignorancia, de onde decorre seu efeito

Montaigne – ha algo que so pode ser escrito pelo esquecimento; seu proprio vazio, seu estado lacunar, sua oportunidade de viver o zero pelo relato e pelo idioma.

Eu – ha algo que so pode ser escrito pela escrita que vem antes, pelo texto da pressa, do contato fugidio

Pesquisa em arte – estado voluntario de ignorancia

Oi,

em 2015, eu abandonei minha conta do facebook, deixei de usar o whatsapp, abri um arquivo online e comecei a escrever minha memória distante dos algoritmos que determinam nosso relacionar-se nas redes sociais hegemônicas.

Nesse meio tempo, ganhei e comecei a utilizar um celular smartphone, o que me propiciou conhecer novos softwares livres e código aberto. E instalei o telegram como um modo de me aproximar novamente de pessoas queridas, eu que estive por tanto tempo disponível somente por ligações, sms, e-mail ou nos encontros fortuitos pelas ruas.

Evidente que pouc_s eram _s que eu conhecia por terem instalado esse mensageiro em seus celulares. Mas, por sorte, convencimento ou conveniência, vi minha lista de contatos ali aumentar dia após dia, mês após mês, ano após ano. É com vocês que falo neste momento: um tanto de gente bonita.

: desejo novamente um período de reclusão dos contatos mais diretos, das trocas de mensagem em tempo real. Eu, em meu problema com o modo de operação das grandes corporações da internet, vejo uma sutileza a mais nessa via desejante que me atravessa. Há um silêncio que, pouco explorado, percebo que fará crescer na medida em que eu abdicar de certos confortos que nossa instantaneidade tecnológica nos permite. Por um momento a mais de respiro, orientado desde 2015 e antes por minha reivindicação de percebermo-nos em agência ao usarmos a internet, opto por deletar meu telegram, escolhendo um intervalo maior entre uma e outra tecla que digitarei como chamado ou resposta a vocês.

Por uma plasticidade do virtual, por toda a desconfiança nas redes sociais, pela selvageria possível, nomadismo que deu lugar ao sedentarismo dos que desejariam se mover se por acaso soubessem da delícia que seria, sigo um e-mail, mailexpressivo@gmail.com (e sou ainda um usuário google)

, em celulares sigo, 21 997839636, 985271669

, um arquivo sendo escrito desde 1989 sigo, processofolio.tumblr.com (ainda yahoo)

, carne,

, em casa, rua engenheiro Gonçalves Neves, 171, casa 1, Penha Circular, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21210-740.

Beijos. Jandir.

 

 

Ao abrir os olhos, no fim da meditação,

Uma criança que, abaixada, ajeitava seus patins, mirava seus olhos também nos meus. Olhos que brilhavam numa pele preta com tranças roxas sobre o ori. Ainda havia outras, sentadas ao meu lado. Não as vi, mas já as sabia antes de enxergar. Eram vozes perto dos meus ouvidos. Poderia ouvir com elas, mas as limitei em um oi tímido, em minhas retinas voltando-se para o chão. Ao levantar levantei também a vista, e vi todos seus dois olhos. Como eram grandes, lindos.

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(Calçada, escrito por Felipe Garcia em colaboração comigo a partir de 2009, período anterior à minha chegada no ensino superior. Sua redação foi concluída em 2012, mas Felipe só conseguiu publicá-lo no ano passado)

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Diria que, um dia, um olho cego me olhou.

A porta do trem entreabrindo, e eu sairia, se não alguém na minha frente, sua cabeça baixa. Permaneci. Ele ergueu seu olhar. Antes de desviar me olhou. Seu olho cego era um só (o outro via, o que não me importava:(: foi na sua única retina esbranquiçada que estranhei, direcionada aos meus olhos, ocupar-se da visão que não pôde, mas que sempre parecerá exercer a quem a encarar, assim como eu. Todavia,., porque me mirou de volta?.. como sou patético rs. Chego a duvidar de uma cegueira patente.

Ou: detida em mim, parecendo me olhar, interrogava se era ela a retina que não poderia algo ou meus olhos que eram incapazes de cegueira. – Não. Eu disse ainda há o que eu não possa ver.

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Você tem um problema com crase mesmo, né?: meados de 2015. Um orientador olhava meu texto, se permitindo o comentário após meu quarto erro consecutivo no uso da acentuação. Ainda houveram outros, que não vi, e que ainda mal percebo hoje em dia.

Uma crase são duas letras ‘a’, uma de frente para a outra. A ponto de fundir-se, o impedimento manifesta-se pela acentuação: é o modo de não fazer desaparecer uma pela outra. Desse modo, um terceiro signo surge, simulacro de um abraço assassino.

O foda é vê-las assim camufladas, ainda que sobreviventes.

Frente às chamas que consumiram um museu nacional, vi meu arquivo tão poeira. Um sopro e minha memória irá. Me vejo revendo todo o esforço, confiança e todo o fervor que empreendi em preencher, em me documentar.

É como quando em quinze do sete desse ano, em que escrevi em meus arquivos sobre três caixas de papelão infestadas de cupins, que continham coisas que até então havia chamado de obras. Postas na calçada junto ao lixo, via com alívio irem embora; era a chance d’eu me tornar outra coisa. Combinou com dois mil e dezesseis, dia dezoito de janeiro, quando anotei como objetivo ter traças como audiência. Pude ver finalmente a agitação de uma platéia similar.

Mas não. Nem a ânsia por memória nem a carne putrefando. O incêndio me faz ver quem me vê. Faz me ver quem eu vejo. Me faz querer mais que perenidade. A vivacidade das chamas, seu flamejar.

Desde 1989, há coisas postas em meu arquivo. As listei em dois mil e quinze, e ainda assim me falta gente. Falta perder mais o eixo de mim. Os dedos dos outros não deixam suas marcas aqui tão bem. cúpulas de vidro me protegem, eu que sou todo museu. Cabe rever as faixas de separação. Destituir a autoria. Rever a arte de um só. Cabem os dedos.

Jandir Jr.:

To pensando em não tentar mais mestrado.

To pensando no tipo de obra que quero fazer no mundo, e acho que não é uma dissertação

Acho que é o arquivo que já faço o que quero fazer aqui em vida

Daí percebi que nunca me dei a oportunidade de cogitar me dedicar a ele completamente.

Como meu grande projeto de vida (afirmar ele como meu objetivo sem buscar vinculá-Io a alguma instância legitimadora, como a academia, por exemplo)

Mas preciso fazer isso, se não vou viver uma mentira. Mais uma, fora as mentiras da humanidade que preciso viver pra ganhar um salário

É isso. E tem muita coisa de linguagem, de formato, que eu quero tornar melhor no arquivo. Quero que seja muito legal ler ele, como um bom livro.

Vamos ver.

Beijo. Bom dia.