Escrevi as palavras abaixo na madrugada do dia 3 de agosto de 2014, em um episódio de sonambulismo. Acordei na manhã seguinte e, mesmo surpreso pela anotação ao meu lado, a deixei cair em esquecimento, só relembrando dela hoje, ao imaginar uma situação que me pareceu insólita, até perceber que eu mesmo já havia lhe protagonizado: uma carta sonâmbula, escrita por um corpo despossuído de vigília, adormecido, ainda que se movendo.

Às Graduações em Artes do Brasil: e-mail enviado para secretarias de cursos de graduação e pós-graduação em artes de todo o Brasil

Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2017

Meu pai vendia cervejas num isopor. Ao morrer essa semana, sobraram duas sacolas de ráfia grandes, cheias até a boca com latas vazias. Ele vendia também as latas vazias. Mas aprendeu que amassando-as o peso dentro de uma sacola entregue dobraria e, com ele, o valor de venda. Esse dinheiro complementava nossa renda familiar e somava aos ganhos de sua aposentadoria de salário mínimo e ao bico com as bebidas no isopor. Mas por seu falecimento já não há dinheiro da previdência pública nem quem venda cervejas aos caras da esquina da Vila da Penha. Mas suas latas vazias há.

Passei a manhã amassando essa última leva. Usei uma pedra grande, como ele, e demorei a entender como fazer isso bem, mas posso dizer que peguei o jeito. De duas sacas, reduzi para uma cheia. E vendo essas tantas latas lembrei de meu título como bacharel em Artes Visuais com ênfase em Escultura, peguei uma das que amassei melhor, escolhi um lugar ao sol e fiz uma fotografia para recordar essa aula que não assisti na faculdade, mas em casa, ministrada por meu pai, ainda que fora de sua presença usual. Ou é artesania popular isso que passa de pai para filho – e nesse caso, um pai e um filho que tem o mesmo nome? A autoria não é importante se somos artesãos, sei disso. Talvez seja por isso que realmente não me vejo escultor: por ser um artesão, que aprende seus ofícios imemoriais com um só mestre, elo de um acorrentado contínuo a preservar aquilo tudo que fiz e que não sei bem, mas são bem mais do que meus feitos. Obrigado, pai.

vidro: e-mail enviado à vidraçaria Tecno Temper

10.3.2018

Entre meu lado de cá e a imagem do que lá está, há um vidro. O sei por tudo o que não lhe transpassa transparente, pelo vidro ser opaco somente na gordura das peles que lhe tocaram, em nossa umidade que nele se tornam gotículas, num pequeno filete de luz que se disperse por sua superfície ou lhe produza reflexos daqui, sendo que nas bordas, onde o vidro dobra deste lado àquele, seus vértices à mostra me dizem do quão espesso é, o que também finda sua transparência.

Mas se as bordas estivessem disfarçadas em molduras discretas, se não o embaçássemos respirando rente a ele, se a luz fosse propícia a não fazer espelho ou prisma, se nem um mínimo grão de poeira lhe aderisse, só o perceberia se, crendo no que ele silenciosamente cindiu, lhe tentasse atravessar sem o saber; como quando fui criança num museu sem andar com as mãos dadas às da minha mãe e corri em direção a algo espetacular que já não recordo, tal o impacto do meu corpo na cúpula que o rodeava.

E agora eu mesmo trabalho em um museu. O que me diz, pela proximidade, que já não há risco de colisão.

carta à n-1 edições

Olá,

Recentemente, comprei dois livros com vocês. Ambos da coleção Lampejos, que têm capas adornadas com alfabetos inventados por Waldomiro Mugrelise; garatujas assêmicas, similares ao que percebemos como letras, sem, contudo, identificarmos seus dizeres. Algo entre os papiros antigos e os desenhos de João Jordão da Silva, numa falta de sentido idiomático que me chamou a atenção, sobretudo quando pus este projeto gráfico em comparação a alguns rabiscos que vi na caixa em que os livros vieram. 

Vejam as fotos que envio no envelope. Vejam que loucura!

É que estou quase certo que não foram vocês, como editora, que desenharam displicentemente na caixa. O que me assombra, e me faz decidir que esta carta, apesar de endereçada à sua sede, não os têm exatamente como único destinatário. Pois sim, é interessante comunicar a vocês sobre essa coincidência, mas me ocorre com igual força pensar em toda a cadeia por onde esta carta passará, entre carteires, porteires e esteiras automatizadas. No que desenhei formas estranhas no envelope que contém esta carta, para que todes possam observar alguns traços assêmicos nele, assim como vocês, antes de rasga-lo e lerem este texto. E, nisso, reside uma esperança: a de que este envelope passe pelas mãos da mesma pessoa que rabiscou a embalagem que recebi, e a mobilize de alguma forma. Ela se recordar dos tracejados que fez e ver nos meus riscos uma resposta seria esperar demais, eu sei. Mas quem sabe observar um envelope coberto por garatujas ilegíveis a autorize a escrever mais, usando seu abecedário pessoal, em cima de correspondências alheias? Quem sabe ela mesma não vá acrescentar algum rabiscado aos rabiscos que fiz no envelope? Quem sabe não se trate de uma só pessoa, mas de uma multidão, se comunicando numa surdez, com algumas canetas esferográficas? n-1, devo assumir: não há como garantir que só eu rabisquei o envelope. Não há como garantir que só ume rabiscou a caixa.

Atenciosamente, 

Jandir Jr., Niterói, 12 de fevereiro de 2023.

Mensagem enviada para Capcom Co.

Oi,

Tomei um susto, porque a cena que vi não se apresentava coerente: um homem, agachado embaixo de uma mesa, com seu boné transpassando o tampo. Demorei alguns segundos para perceber que seu boné, na verdade, estava pousado em cima. Que o vi no exato instante em que, esgueirando-se para aparafusar uma das pernas de madeira, parou alinhado ao chapéu, como se sua cabeça, calçada com o boné, atravessasse o obstáculo. Era como se a solidez do móvel não fosse nem mais nem menos penetrável que a da tensão superficial da água. Como se, em questão de segundos, todo seu tronco pudesse passar por dentro da madeira, mostrando-o de pé, com um retângulo em torno da cintura.        

Comunico a vocês, uma produtora de jogos feitos por computação gráfica, e anexo uma imagem que fotografei assim que percebi meu assombro. Porque vejo na foto uma comprovação de que essa cena em muito se parece com uma falha de gráfico. Como nos jogos, quando um personagem bugado atravessa uma parede, ou transpassa qualquer sólido. Contudo, Capcom, me seduz fantasiar que, nesta imagem, haveria uma prova contundente de que existam falhas no gráfico da vida real. De que vivemos numa realidade tão computadorizada quanto os jogos que vocês produzem. E imaginar seus funcionários recebendo esta foto com assombro, largando computadores, deixando qualquer coisa cair de suas mãos ao se chocarem com a artificialidade de nosso mundo. Percebendo-se espantados ao verem, nesta fotografia, que o planeta é desenhado por outro geek cansado, observando o universo em um monitor potente, conectado a um PC de dimensões imensas.          

Gostaria de não ter escrito explicação nenhuma. Que o assombro fosse possível tão somente ao enxergarem esta imagem, assim como foi para mim.         


3 de dezembro de 2022 às 04:31
CAPCOM ID Support help@cid.capcom.com
Para: Jandir Jr. mailexpressivo@gmail.com

平素より『CAPCOM ID』をご利用くださいまして、誠にありがとうございます。
CAPCOM IDサポートです。

ご連絡いただいた内容を拝見いたしました。
We have reviewed your inquiry.

誠に恐れ入りますが、サポートを行っている言語は、日本語、もしくは英語のみとなります。
Unfortunately we can only provide you with support in Japanese or English.

そのため、いずれかの言語にてお問い合わせくださいますようお願いいたします。
We apologize for the inconvenience but please contact us in either language.

お問い合わせいただきありがとうございました。
今後ともCAPCOM IDをよろしくお願いいたします。

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arquivo: mar é uma publicação de dez exemplares, com sua maior parte presente em bibliotecas de certas instituições da cultura. Abrange momentos entre 1998 e 2019, tratando do trabalho de educadories e monitories em museus e centros culturais, tendo por principal caso o Museu de Arte do Rio. A partir das experiências de trabalho de seu próprio autor, foi criado como um diário e, por vezes, como compêndio dos depoimentos de outras pessoas. Por isso, arquivo: mar assume posição sobre o campo da mediação cultural de modo classista; observando-o a partir das subjetividades e prejuízos de trabalhadories de base nestes ambientes sobredeterminados por sues superiories imediates, pelas instituições que lhes abrigam e pelo patrimônio dos mais ricos que tais espaços exibem e resguardam.



arquivo: mar
Rio de Janeiro: Selo Ocasião
2022
ISBN: 978-65-990576-1-8
Autor: Jandir Jr.
Editora: Mariana Paraizo
Projeto gráfico: Mariana Paraizo, Diambe da Silva e Jandir Jr.
Design: Diambe da Silva e Sofia Caesar
Diagramação: Diambe da Silva, Daniel Dargains e Sofia Caesar
Serigrafia: äline besourö, Sofia Skmma
Pasta arquivo sanfonada: Atelie Flor de Maio
Textos de apresentação: Mariana Paraizo, Tadáskía e Jandir Jr.

[Disponível nas bibliotecas do Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, Escola de Artes Visuais do Parque Lage e Biblioteca Nacional]

Fotos: Juliana Trajano

Para fazer graça, gravei um vídeo acariciando um manequim. Enviei a um amigo e, logo, ele me mandou uma foto e um tweet sobre, o que me motivou a compartilhar minha gravação, junto com as contribuições dele, nos stories do Instagram. Apresento aqui a sucessão de respostas enviadas, por muitas pessoas, a essas primeiras imagens. O que levou três dias, e me faz pensar que construímos um longa-metragem, para o qual proponho um nome, que somaria ao de tantos outros filmes homônimos:

Manequim

.

*com Renato Gadioli, Naluh Duarte, André Vargas, Michael Gottlieb, Dominó, João Paulo Ovidio, Stewart Raffill, Mônica Coster Ponte, Jorge Soledar, Georges Marques, Pigmaleão, Rubens Takamine, Bella Poarch, Tadáskía, Ilê Sartuzi, Leandra Espírito Santo, Wesley Ribeiro, Lorraine Mendes, Sydney Newman, C. E. Webber, Donald Wilson, Rafael Salim, Alex Garland, Antonio Gonzaga Amador, Maria Clara Boing, Sophie Kinsella, P. J. Hogan, Rafael Silva Lima, Kim Kardashian, Demna Gvasalia Daily, Pablo Amorim, Talibã, Tulio Costa, Leandro Eiki, Busca, Michael Bartlett, Jéssica Hipolito, Francis Lawrence, Andrey Koens, Andrew Moreira, Yuri e os terráqueos, Wisrah Villefort, Nathan Braga, Pabllo Vittar, Silvana Marcelina, Christian Baloga, Estefânia Young, Thaís Basilio, Everton Leite, Richard Hoeck, John Miller, Martine Gutierrez, Antonio Bokel, Jéssica Guia, Steve Behling, Cirillo Tangerina Bruno, Almeida da Silva, Kanye West, Yuri Tolochko, Pedro Caetano Eboli, Marcel Duchamp, Man Ray, Manuel Álvarez Bravo, Mariana Paraizo, Santinha, Juliano Gomes, Léo Bittencourt, Anderson Felix, Lucas Brandão, Hudinilson Jr., Daniela Dacorso, Lais Pinheiro, Nelson da Motta, Zex, Ariel Pink, William Lustig, Yná Kabe Rodríguez, Jovian, Zaven Paré, Juany Nunes, Régis Sicoti, LOEWE, Matheus Simões, Hans Bellmer, Mariana Marques, Nadja Kouchi, Jardes, Alejandro Jodorowsky, Robnei Bonifácio, Urias, Juliana Pithon, Siron Franco, Kleber Bambam


[São Paulo: Meteoro Edições. Impressão laser sobre papel sulfite 75g. 11,5 × 5,8 cm, 170 páginas, 2022.]

O texto abaixo reproduz uma carta, anônima, que foi deixada na região portuária do Rio de Janeiro, no dia 15 de agosto de 2022

Esta carta foi largada no banco de uma estação de VLT. Em frente à parada, há um museu. Se olharmos com atenção, veremos que o prédio não tem mais de três andares, e no seu terceiro piso, aproveito para contar, sete pessoas se reuniram num sábado à tarde, parecendo animadas em conversar com quem visitava o local. Eu, o narrador, estava no grupo, mas observava-as. Desconfiado, perguntava: “vocês estão mesmo confortáveis em interagir com gente desconhecida?” Contudo, recebi respostas sorridentes, e me fiz crer que estavam.

Uma das pessoas traçava a estratégia de chegar perto de alguém e perguntar, de supetão, algo como um “tudo bem?” E muito do que pensava conversar depois dessa abordagem versava sobre o próprio museu, a temática das obras expostas ou os motivos para se estar ali. Seriam então conversas que, tomando partido do microcosmo museal, mirariam no que ela e outras visitantes tinham em comum, não nas suas diferenças. Esse método despretensioso, a princípio só dela, vingou: numa escolha unânime, o coletivo decidiu por puxar assunto de modo prosaico, desejoso por ouvir impressões desde o teto que nos abrigava.

Separaram-se então em três duplas. Algumas levaram objetos para tentar chamar atenção. Outras andaram, escolhendo com quem conversar. Eu fiquei de fora, e só as reencontrei depois de dez minutos, enquanto descíamos do museu. À essa altura, as palavras rarearam entre nós.

Uma pessoa disse que foi difícil. Outra, acrescentou: “Mais difícil do que imaginava”. Saindo do elevador, chegamos no Boulevard Olímpico e, para completar, começamos a ver a rua como o avesso de qualquer conversa. Porque era um lugar que desafiava essas vontades de ágora. Que retirava-nos as paredes. Que, com sua falta de limites, nos fez pequenas. E, de tão minúsculas que estávamos, nos agrupamos em roda. Ali, enquanto conversávamos, hesitantes, sobre abordar desconhecidos, soube como cada par agiu dentro do museu.

Uma dupla ouviu uma visitante cantar, juntaram sua voz à dela e, engatadas à cantoria, trocaram algumas palavras. Outro duo optou por uma estratégia indireta: numa pequena sala, permaneceram conversando afastadas, de modo que quem entrasse não pudesse circular fora do diálogo que acontecia. A terceira dupla aproximou-se de um casal já apresentando suas intenções, e lançaram, mesmo entre embaraços, algumas perguntas.

A despeito das estratégias desenhadas, parecia que nada disso funcionaria do lado de fora em que estávamos. Não havia mais museu, obras, teto, paredes. Então, nós pensávamos: como, e sobre o que, falar?

Esta carta que você tem em mãos vejo como uma alternativa a tais hesitações. Depositei-a, semanas depois, num dos bancos do VLT Carioca, Parada dos Museus, onde nos despedimos naquele dia. É que, antes da despedida, uma das pessoas relembrou dos cemitérios de pessoas sequestradas, escravizadas, descobertos em parte nas obras de implementação do próprio VLT Carioca. E outra das pessoas chegou a lembrar de um monumento feito de pedras de tropeço que, espalhadas por Berlim, faz turistas toparem seus dedões em pequenas placas elevadas no solo, com nomes das muitas vítimas da Shoá. Entre tropeços, desterros e o que constitui tantas ruas, como uma terceira pessoa comentou, percebemos então que era importante pedirmos licença, irmos com respeito e calma, antes de prosearmos sobre andar onde pisamos. Assim, uma carta anônima me pareceu uma boa forma de prometer esta conversa; quando nossos pés se plantarem num chão; quando um chão sustentar nossa caminhada.

Fica aqui nossa promessa.

Carta a um capitão: enviada ao então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro

Eu pausei uma música agora mesmo e decidi começar a escrever. Para iss, primeiro, apaguei as luzes. Ou melhor, antes disso, fechei as janelas do meu quarto. Aí sim, depois de pausada a música, apaguei as luzes. Cobri os botões com leds do meu computador. Reduzi o brilho da tela até o ponto em que ela se mostrasse desligada. Por fim, para garantir, fechei os olhos. Garanti a mim mesmo a completa escuridão. É nela que quero lhe escrever.

Meu nome é Jandir, mas houve também ênio Silveira, que escreveu duas cartas ao Marechal Castello Branco, quando foi presidente. Eu estou aqui, mas soube também, e antes, de León Ferrari, quando escreveu ao general, ou melhor, a um general. Carta a um general: uma amálgama de garatujas que, de tão emaranhadas, e apesar de carregarem ns suas formas a tônica alfabética das cartas, dos textos, da rpos organizada em linhas pautadas de caderno, guardavam… um a opacidade. Um silêncio? Não. Eu diria que guarvabam um grito que barulhento como era, nos deixouensudersidos…. sua carta, uma obra de artes plásticas, é ilegível. E foi endereçada a um general. Qual? Como seberíamos.

Quem é você, capitão? O escuro me faz pensar em dormir, em sair daqui e ir beber água, em relativizar a importância de lhe escrever algumas palavras. Sabemos que pergunto quem você é, mas, se as caa crta chegou à sua mão, ou na mão de alguém que esteja mais próximo de você, sabemos…. você é nomeável.

Mas a vulgaridade está é reforçar o quanto, apesar de nomeável, você permanece inominável. O quanto, a despeito de sua projeção nacional, a despeito do lugar que ocupa, dos seus detratores e aliados, a despeito de tudo isso, voc pode ser visto, por mim ou por outras popessoas em potencial, como um anomnimo. Uma incógnita. Algo passível de não existir. Um destinatário que surge em meio a escuridão.

E talvez meu costume em datilografar no teclado do computador e as rahuras nas teclas estejam me ajudando a me fazer compreensível. Por outro lado, talvez não: talvez minhas exitações, no uso das teclas de correção tão rapidamente que eu não conto quanto estou apagando, quantos caratcetres se vão… talvez, a despeito do meu costume, o hábito adquirido de digitar ráido, conferir com o olhar os erros que a velocidade imprime aos textos que datilografo… eu devo estar errando, é certo. Mas …

Tamvém vim no esuro. Com ideias nebulosas. Sem certezas. As luzes que aqui estão apagadas, meus olhos fechados, a ipetulancia em escrever sem plano do voo, tudo isso se soma. Numa carta que não tem tanto a lhe dizer a mais do que o que já diz pelas suas hesitações, erros imprecisões, esquivas. Penso eu que aescrita prescinde da luz – tanto que eu estou aqui, escrevendo na mais completa escuridão. Já a leitura, essa leitura feita pelos olhos ante uma página impressa, necessidade deiluminiação. Mas… quem sabe, a luz que você usará para ler seja, na verdade, certo adereço bobo. Que iiluminie pouco e mal. Quem sabe, …. as ideias talvez se mostrem apagadas, o mundo sse mostreapagado… sei lá, entendo que se eu escrevo no escuro. É porque acredito, no íntimo, endereçar ao escuro a carta. Acreditar num serviço postal que transmita a ideia anoitecida até você, porque compartilhamos algo, essa noite que recai sobre nossos olhos, sobre nossos omros. Sei lá.

….

Uma noite sem lua.

Não tenho mais o que dizer, eu acho.

Att.,

12 de agosto de 2022 às 12:47
infoap@presidencia.gov.br infoap@presidencia.gov.br
Para: mailexpressivo@gmail.com

Prezado Senhor Jandir,
O Senhor Presidente Jair Bolsonaro incumbiu-me de registrar o recebimento de sua mensagem.
Cordialmente,
Marcelo da Silva Vieira
Chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica
Gabinete Pessoal do Presidente da República

Tratamento dos dados conforme o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais-LGPD (Lei 13.709/2018).

Antropoazia: e-mail à fabricante do sal de fruta ENO

Olá,

Uma das mais longínquas lembranças que tenho com um de seus produtos não me vem porque o utilizei. Recordo da obra de um artista, Paulo Bruscky. Coisa simples: um sachê de sal de fruta ENO colado em uma folha de papel em branco, com uma palavra carimbada, encabeçando o quadro. POAZIA é o escrito; trocadilho espirituoso entre as palavras ‘poesia’ e ‘azia’ – e com o sal de fruta, claro, reforçando um sentido estomacal, ácido; ratificando um humor fisiológico à composição.

Já em outra ponta, aparentemente destoante do que acabei de dizer, eu penso: à antropofagia seguimos sem um sal de fruta sequer.

Não, não digo que comemos uns aos outros. É que há quase cem anos, Oswald de Andrade escreveu o manifesto antropófago. Foi quando o termo tornou-se um conceito para se pensar o Brasil, e que é usado até hoje. Uma das frases no manifesto funciona como síntese: “Só me interessa o que não é meu.”, isto é, percebemos que nosso país deglutiu tudo que lhe é outro, estrangeiro, ou mesmo autóctone, tornando-se a partir da devoração. É certo, também, que sugeria-se aí outra forma de se jantar essa janta dos costumes. O texto é um manifesto, afinal. Desejava, imagino, informar a uma modernidade nascente: a elite cultural que pretendia vanguardear a produção artística nacional. Pintando uma negra. Celebrando trenzinhos caipiras. Textualizando Makunaimã. Ao passo que usando, para isso, de soluções dialógicas aos movimentos artísticos europeus. Ou seja, cosmopolita, herdeira do colonial, ainda que aqui, nos trópicos.

Pois bem. Quem comeu esse banquete, comeu bem? E nós, seguimos na mesma mesa que eles? Ou comemos seus restos? Ou somos a digestão desses antropófagos? 

Talvez estejamos com azia.

Por isso, gostaria de sugerir ao setor de marketing desta distinta empresa o slogan ANTROPOAZIA. Imagino algo simples para a campanha; ‘antropoazia’ carimbada e, logo abaixo, um simples sachê, assim como na obra de Bruscky. Mas, contanto que façam menção ao trocadilho, imagino que qualquer outra solução visual cairá bem.

                                                      ANTROPOAZIA

Dessa forma, o sal de fruta ENO se fará novamente presente nos debates da cultura nacional. Não só na poesia e visualidade de uma das obras de Paulo Bruscky, mas também na pujante definição do espírito nacional antropófago. Pois, ao que tudo indica, são digestivos os problemas que afligem o termo. Feita de uma alimentação excessiva, misturando comidas que não casam bem, a antropofagia se mostrou a esbórnia de alguns, com direito a ressacas angustiantes e a acidez cultural em que vivemos hoje, o dia seguinte dos antropófagos. Ressaca moral que vem do contato com a verdade nua e crua, destituída das vestes que a embriagez deu ao que viram, ou melhor, ao que deixaram de perceber: todo um povo além, desinteressado, ou mesmo afastado desse banquete. O que preservou a saúde de uma pequena parcela de pessoas, que não comprarão o sal de fruta, imagino. Mas não pensem nisso por agora.

Atenciosamente,

5 de julho de 2022 às 09:15
Brazil GSK Consumer Relations sac.consumo@consumerrelations-mail.gsk.com
Para: “mailexpressivo@gmail.com” mailexpressivo@gmail.com

Olá Jandir Jr.,

Agradecemos seu contato com a GSK Consumer Healthcare Brasil sobre o produto Eno.

A sua solicitação foi enviada ao departamento responsável e entraremos em contato assim que recebermos a informação.

Se quiser fazer alguma solicitação adicional, fique à vontade para entrar em contato conosco no telefone 0800 021 1529, de segunda à sexta, de 8h às 17h, exceto em feriados nacionais.

Agradecemos o tempo disponibilizado para entrar em contato conosco.

Atenciosamente,
Serviço de Atendimento ao Consumidor
GSK Consumer Healthcare Brasil