[publicada no livro DSR, descanso semanal remunerado, que v branco criou em 2023 e que chegou às minhas mãos hoje]
Vivian,
Não te conheço, mas já vi seu rosto duas vezes.
(não sou um stalker, tá?)
Na primeira, estava na página de Instagram dum restaurante. Desci e encontrei um post que celebrava seu aniversário. Te chamavam de incrível, declararam que todos na empresa a amavam, e os parabéns nos comentários vinham aos montes, de muitas pessoas, como uma confirmação, sabe? A foto de seu busto mostrava você uniformizada, com um sorriso tranquilo, contra um fundo neutro, uma parede de tijolos pintados de branco. Uma foto que compunha a grade de imagens com que o restaurante se apresentava na rede social. Fotografias profissionais, de comidas bem empratadas, pessoas gargalhando, embalagens chiques, letterings feitos por algume designer, sorvetinhos, donuts, pães gostosos… e, salpicadas entre uma postagem e outra, algumas pessoas uniformizadas, sorrindo. Transmitia-se a ideia de um ambiente agradável, bom de se comer e de se trabalhar (vocês aceitam currículo?).
Não cheguei até esse Instagram à toa. Um artista conversou comigo. Trabalhador das cozinhas, um antigo funcionário daí, fotografou os rostos de colegas de trabalho e, com as fotografias feitas, compôs este livro, entremeando-as à algumas páginas que registram a carteira de trabalho de seu avô. Retratos quase todos em preto e branco, enquanto a carteira colorida, em suas cores sépia, com o amarelado da passagem do tempo, só me fez pensar que o trabalho de base é atemporal, envolve complexidades transatlânticas, sindicalismos e quilombos, hoje, amanhã, depois. As fotos estão em 3×4, seguindo o tamanho e o posicionamento de uma marca de fotografia na antiga carteira de trabalho, vazada para o verso de uma página. Ele, esse artista, foi quem falou seu nome para mim. Sua 3×4 é a última do livro.
Foi a segunda ocasião em que a vi. Seu sorriso me transmitiu a mesma tranquilidade. Seu uniforme, o mesmo padrão quadriculado. Mas havia uma bandana em sua cabeça, um avental preso em seus ombros, e o enquadramento no seu rosto tornou quase como um monumento seu olhar direcionado para baixo, não para a lente da câmera. Da primeira foto então percebi algo para além de seus cabelos trançados e de sua presença exaltada. Percebi que só na segunda imagem criei alguma ideia do que seria a amizade e o trabalho contigo. O que me fez sonhar o que estaria para além do enquadramento na 3×4: você, apoiada num balcão, abrindo um sorriso após gargalhar sobre qualquer piada, talvez compartilhando com es colegas o cansaço da rotina, ou a satisfação de mais um dia entregue com excelência. Ou absorta em seus próprios pensamentos, num momento de introspecção.
De certo, sei que eu, imaginando isso, pude olhar de frente o que geralmente está em segundo plano: algumes trabalhadories de uma cozinha. E tenho neste livro uma espécie de envelope para esta carta, que um artista, um dia, me pediu para escrever à você.
Fruto do encontro com o artista Felipe Nunes, 𝘔𝘦𝘯𝘴𝘢𝘨𝘦𝘮 é uma publicação resultante da exposição individual de Jandir Jr., que aconteceu no espaço independente A MESA, no dia 26 de abril de 2024, das 17h às 21h.
Para além dos papéis que foram fixados nas paredes, reunindo algumas das mensagens encaminhadas por Jandir para desconhecidos, este .pdf se faz entre o catálogo e o livreto, o analógico e o digital; entremeando aos registros da ocupação dispositivos inventados, luzes, brilhos de flash, soluções visuais B2K, máquinas comunicantes.
Junto à mostra, aconteceu um encontro com leituras de poetas convidados; uma proposta mantida pela A MESA desde seu início, em 2015, nas exposições que propõe e sedia.
𝗔 𝗠𝗘𝗦𝗔 Bianca Madruga Cesar Kiraly Letícia Tandeta Yago Toscano
𝗘𝗻𝗰𝗼𝗻𝘁𝗿𝗼 𝗱𝗲 𝗽𝗼𝗲𝘁𝗮𝘀 | 𝗖𝘂𝗿𝗮𝗱𝗼𝗿𝗶𝗮 Set
𝗘𝗻𝗰𝗼𝗻𝘁𝗿𝗼 𝗱𝗲 𝗽𝗼𝗲𝘁𝗮𝘀 | 𝗣𝗮𝗿𝘁𝗶𝗰𝗶𝗽𝗮𝗻𝘁𝗲𝘀 Carol Luisa Inês Nin Lívia Aguiar rafael amorim e Lucas Canavarro Set Téia Porto
𝗙𝗼𝘁𝗼𝘀 Rafael Salim
𝗗𝗲𝘀𝗶𝗴𝗻 | 𝗣𝘂𝗯𝗹𝗶𝗰𝗮𝗰̧𝗮̃𝗼 Felipe Nunes
𝗜𝗦𝗕𝗡 978-65-01-23449-6
[Recomenda-se a leitura no computador, mas com alguma paciência é possível ler no celular]
Trânsito apinhado, dia anoitecido, demoravam os ônibus. Era uma noite que me incomodava em tudo, quando uma ideia me tomou de assalto e me espantou: e se, um dia, eu sentisse saudade até mesmo do que eu mais desprezo neste mundo? Sei lá, eu devo ter olhado alguém pedindo dinheiro, pensado na fome e me indignado, ao passo que reconhecido que não conheço nada, nenhum outro mundo, nenhum outro lugar. Até firmar uma posição e te envolver, demorei umas semanas. Entre escrever, imprimir este documento, enfiar ele num envelope embaixo da sua porta, como se fosse uma renovação no contrato do seu aluguel… Mas peço, caso esteja de acordo, que não assine na linha abaixo. Ao invés disso, escreva nela a palavra saudade, com sua própria caligrafia. Com isso, quem sabe, cada traço vacilante das suas letras nos desterraria daqui, deixando-nos com a vontade de uma volta apressada. Como se, lá na frente, decidíssemos viajar no tempo, do fim do mundo pra hoje, para ver novamente a fome, o suor escorrendo da têmpora, a buzina dos carros, UTI’s sem funcionar, bares abertos, o debate eleitoral, a unha do dedão com sangue pisado, as pedras portuguesas, a pele lacerada, o chorume na rua, a lágrima nos olhos dos outros, o jeito como o corpo treme de frio, a faca cortando legumes, o velho caído na frente do shopping, a fina camada de cutícula antes da pincelada com esmalte, o óleo ungido, a bala perdida, uma camisa manchada de sangue, a pétala daquele crisântemo.
Vocês já conhecem Stella do Patrocínio. Um livro atribuído à sua autoria foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2002. Foi na categoria Educação e Psicologia, e não na de Poesia Brasileira, onde a vemos consagrada. Digo que foi um livro atribuído, e não que ela mesma foi indicada, porque foi produzido ao largo de sua agência, muito depois de sua passagem. Vivendo entre internações compulsórias em hospitais psiquiátricos, Stella faleceu aos 51 anos na antiga Colônia Juliano Moreira, enterrada como indigente. Sem posses identificadas, números de documentos, sem familiares, foi trancafiada sob o jugo da doença mental e considerada ninguém no registro de sua morte. Mas como uma mulher que dormia em quartos coletivos, num amontoado de gente, cuja até as vestes eram marcadas com a alcunha da instituição que a aprisionava, tem um livro publicado e é um sólido nome entre poetas e literatos?
O caminho até a publicação é longo, atravessa décadas. Mas interessa a esta carta seu ponto de partida: Stella teve sua voz gravada na década de oitenta, no contexto de oficinas de arte que aconteceram no núcleo em que esteve presa. Em quatro faixas de áudio divulgadas na íntegra só em 2022, percebem-se as falas posteriormente organizadas em forma de poesia no livro indicado ao Jabuti, mas também tudo que escapou à transcriação de quem converteu os sons em textos. Ruídos de fundo, testemunhos de como soava aquele manicômio, burburinhos, conversas paralelas, as vozes das interlocutoras de Stella, que não constam no texto final, como entrevistadoras, ou algo assim, mas que a notaram e quiseram gravá-la quando foram convidadas para dar aquelas aulas. E o que mais me mobilizou: perceber como Stella disse muitos nãos.
“Eu já falei o que podia, num tenho mais voz”
“Eu não sei mais”
“Esqueci”
“Você tá me comendo tanto pelos olhos, só pelos olhos pelas palavras, que eu fico sem força”
As recusas eram insistentes. Ora saídas sinuosas, ora confrontações diretas às perguntas que pediam para ela cantar, falar qualquer coisa, que a elogiavam para, em seguida, lhe extrair algo. Num dos trechos mais ostensivos, Stella fala: “Cê me pega sempre desprevenida, hein? Quando eu tô com vontade de falar tenho muito assunto, muito falatório, num encontro ninguém pra quem eu possa conversar. Quando não tenho uma voz mais, num tem um falatório, uma voz mais, vocês me aparecem e querem conversar conversar conversar conversar”.
Penso que o silêncio de figuras públicas é estranho. Quando muito, sabemos do clamor contra certo famoso que não se pronunciou sobre um caso polêmico, no que fica evidente que sua relevância é feita, sobretudo, de palavras. Ainda que calar não entre no que consideramos ao eleger a importância de alguém, ressalvo: a quietude me parece de certo modo resguardada como um direito – convivemos com os hiatos de bandas famosas ou com estrelas fugindo de paparazzis. Mas não podemos conviver com o silêncio de Stella do Patrocínio, cuja vida pública foi praticamente desvinculada de sua vida orgânica. Não digo do silêncio obsequioso, imposto como castigo, ou da falta de ressonância dos que não são ouvidos. Falo daquele silêncio desejado, de quando queremos e podemos aquietar. De quando alguém se recolhe e reconhecemos, nisso, autocuidado e calma. Sei que não podemos conviver com o silêncio de Stella, uma das tantas espoliações que seu corpo sofreu ao longo da vida. Mas em suas recusas, audíveis nesses arquivos em .wav, pude vislumbrar sua pretensão à quietude numa importância tão grande quanto a de seu falatório.
Eu não sou tão envolvido com literatura. Minha relação com prêmios e assuntos literários é lateral, para ser generoso. Mas não pude deixar de pensar em Stella ao reabrir um dos meus livros de formação, importante à área que me vejo relacionado – às Artes Visuais –, e ver, nele, o sobrenome de um artista estrangeiro, em posição de importância. Omito seu primeiro nome de propósito, e do capítulo que carrega suas falas – de uma entrevista transcrita, com a devida presença transcrita de seus interlocutores – retirei tudo, numa edição que subtraiu e embranqueceu as páginas, com exceção do que até então era um sobrenome: Stella.
O resultado me parece uma constelação. Estrelas e o silêncio do espaço sideral. Envio as páginas em que intervi junto a esta carta. Acredito que o Prêmio Jabuti, que a Câmara Brasileira do Livro, acabaram cumprindo um papel legitimador, instituidor da evidente força das palavras de Stella. Mas só ouvindo Stella pude entender algo que escapa ao que entendemos como importante à humanidade. Algo que segue no fôlego que tomamos entre uma palavra e outra, nos momentos em que calamos por desejo, em quando dizemos não. Envio esta carta, e as páginas que seguem, como quem diagnostica uma só força nos silêncios e nos falatórios. Das que foram vitimadas e das que não serão. E em Stella, que num dos poucos gestos de resistência que se tornaram públicos, me fez pensar que não só as palavras da humanidade merecem prêmios, mas também os silêncios (ou a busca por eles).
Demorei 25 anos pra responder. É tanto tempo que envio uma cópia da carta que cê me mandou, tô certo que você já esqueceu. Eu mesmo esqueci: você elogiou um desenho que fiz, e já não lembro qual foi. Você me convidou para participar do jogo das profissões, mas quais eram as regras? De todo modo, também mando uma fotografia minha, com décadas de atraso e, portanto, com um rosto envelhecido em relação àquele menino de dez anos que, quando recebeu a carta, respondeu ao seu pai que preferia não ir ao estúdio participar do programa. A distância entre Penha e Ipanema eu medi, naquela época, pela necessidade de sairmos de madrugada para pegar o primeiro ônibus. Hoje, sei que a distância também tem por medida um quarto de século e, por isso, talvez você que recebe esta carta não se chame Malu, apesar de responder pelo mesmo endereço. Se for o caso, não se preocupe, ignore a mensagem. As cartas, às vezes, se extraviam para conversar com seus próprios descaminhos.
fotos: Rafael Salim, 2025
[Esta carta foi um dos capítulos da revista ‘plin plin’, lançada na ocasião da exposição homônima de Felipe Barsuglia no Projeto Vênus em junho de 2024. Tiragem de 200 exemplares. Venda proibida]
mensagens escritas por mim, Silvana Marcelina e André Vargas para a exposição individual de Rodrigo Ferreira, Arapuca-cascabulho, que inaugurou no dia 11 de maio no Ninhu, em São Paulo, e encerrou no dia 1 de junho
Ban [Jandir Jr.], [13.4.2024, 12:24]
deré, tiba, lembro daquela conversa sobre a mochila do bledo. Aquela que inspirou uma pintura da Silvana. Uma bolsa preto-e-branca, trançada de um jeito que não se vende em lojas, mas nas ruas. Uma mochila que, como um ícone, fazia vislumbrar uma coisa difícil de pôr em palavras, sobre as pontes que descem entre o nordeste brasileiro e o subúrbio carioca. Como uma rede pendulando entre cá e lá, com uma ponta fixada no oceano atlântico e outra naquela parte, quase-tordesilhas. Lembro da mochila, mas também lembro que nunca percebi sotaque no meu pai. Que certo jeito de falar, de escrever, de comer, de dançar são para mim uma expressão tão cristalina que me surpreende quando outros veem uma coisa estrangeira no que me parece, sui generis, sudestino. Aí penso no que o trabalho do bledo diz sobre as faixas do André, as minhas performances, sobre o quartinho que Silvana fez numa exposição. Nosso ambiente de formação é qual? Para além das academias que frequentamos, aposto que nossas escolas são contínuas às escolas de chão de terra batida que nossos antigos pisaram. Nosso humor vem embalado por uma quentura que a antiga capital brasileira nunca experimentou. Escrevemos rimas que foram sonhadas por rimadores descalços. E assim, cosmopolitas estranhos, pendulamos entre cá e lá, com identidades feitas não do enraizamento, mas da migração. O que, certamente, fala sobre um todo maior; uma multidão caminhando sem parar, já cansada, mas que, ao olhar suas próprias pegadas, pensa seu andar feito não só do que aponta no horizonte, mas também do que se afastou. Dedão e calcanhar: duas setas.
Tiba [Silvana Marcelina], [03.05.2024, 08:54]
Ban, eu li tuas palavras a primeira vez e senti uma certa emoção na alma porque me vi absolutamente representada quando você diz das identidades feitas na migração e não no enraizamento, “dedão e calcanhar: duas setas”. O desejo foi de soltar aquele *orra beeem carioca, justo eu que sou fluminense. Na tua mensagem há um mapa que vai sendo desenhado nas e pelas miudezas, tal qual os trabalhos do bledo [Rodrigo]. Há muita poesia no gesto de olhar a paisagem e sacar dela um pedacinho qualquer em que se encontre um sentido, um verso, uma brincadeira, um afeto. Porque, afinal, é nesses miúdos que a gente se inventa, constrói laços e cria raízes (fixas e móveis). Mas também é nesse espaço-tempo que a gente é compelido a, violentamente, só olhar a paisagem e tentar se integrar na ilusão do todo, negando a parte. Aí fico pensando que as obras do bledo são também do gesto diminuto do cuidado e da cura, como quando a nossa mãe passava merthiolate no machucado. Uma mão leve fazendo uma pequena espátula roçar na ferida aberta, a ardência tomando conta e gesto mágico do sopro para aliviar a dor. Eu olho para as pinturinhas, as fotins, as palavritas, os versos e é como se essa brisa da boca de mãe soprasse no meu coração. E aí eu me conecto com a cadeira de vó de uma vó que nunca pude ter por perto, mas que mesmo assim eu a vislumbro balançando sob o sol da tarde, num cá e lá.
Deré [André Vargas], [06.5.2024, 15:56]
A cadeira que balança a vóinha e o povo todo a caminhar com os pés de bússula. de cá pra lá, de lá pra cá. Um balancê danado nesse conversê que a gente tá dando sequência desde o dia em que nos conhecemos. Nós quatro, andando feito bobos, conversando sobre tudo, de uma sala de exposição para outra quando éramos educadores do mesmo museu, fazendo o tempo passar mais amigo da gente, na burla clara de mais um dia de corpo em riste. É assim que eu sinto esse texto, uma sequência de uma conversa que começou no primeiro dia de trabalho e seguiu vida afora, amizade adentro. Rompendo os traumas da labuta pelo poder do papo furado feito água mole em pedra dura.
Há, de fato, como o Ban(Jandir) bem disse, um nordeste forte e magnético puxando a seta da bússola do subúrbio, e do suburbano, sudestino ao seu destino mais promissor: ser caatinga, restinga e sertão. Mas há também uma ilha no existir de quem trilha a andança como forma de vida. Uma sensação estranha e estrangeira que permeia toda a pertença que possamos experimentar em qualquer lugar em que nos aquietamos. É o que vejo nos trabalhos do Bledo(Rodrigo), um rebuliço entre um nordeste que puxa para seu seio e uma insularidade indissolúvel no olhar de quem o ama.
Achar, por exemplo, na Ilha de Ferro a madeira e outras maneiras de resolver a vontade, além de achar as pedrinhas miudinhas que alumiam suas passagens, paragens e olhar – o tal miúdo essencial que pauta bastante dos processos do Bledo, como bem lembrou a Tiba(Silvana) – é mais um sinal de que as ilhas se revelam aos que, como ilhas, são capazes de se sentir. O olhar de ilha, como o do Bledo, é interessado no segredo e apruma as oiça pra ouvir a ladainha. Vê no que está fora tudo o que está dentro. A fachada como convite a entrar, o varal como um portal a atravessar e outros lugares onde seu olhar espera e espreita de fora a força interior, como uma ilha que, cercada de mar, sente a maré como quem respira.
Dentro e fora; Interior e exterior; Lá e cá… são falsas dicotomias, uma vez que são resultados de um mesmo ponto de vista. Acredito que a ideia de sudeste e nordeste também assim o seja e, portanto, não é na diferença que reside a fronteira, mas no que há em comum entre essas duplas de sentidos: o segredo. E a única coisa que podemos saber de um segredo, sem que ele deixe de ser segredo, é que o segredo é palavra. E o segredo é palavra que precisa sempre ser inventada, reinventada, escrita, borrada e apagada sem dó para manter-se secreto, e Bledo, ciente de que este é um jogo de azar, joga os dados, costura frases, pinta e rasga fita crepe e manifesta como um convite para conversar sobre as rotinas mais simples e nada secretas, pois é na fachada que está o convite para entrar.
Na rasura, no rascunho, na garatuja e no descartar, assim como no interior de si, no interior do só e no interior que é só o interior daqui. Jogando com as palavras, andando e conversando o mais simples para o tempo passar amigo, como nós quatro faziamos de uma sala de exposição a outra, Bledo é um artista e educador dos espaços onde habita, sensível a todo entorno que entorna em grandes ondas de suor e frescor, no mar dos desconfortos e confrontos da vida, uma ilha.
Este bilhete foi escrito por um educador que demora quase três horas para ir ao museu onde trabalha. Que demora quase três horas para voltar para casa. Que acorda às cinco da manhã e, nos dias mais escuros, tem dúvidas se conseguirá dar um beijo de despedida no rosto de sua companheira ou em sua cabeça, ou no seu ombro, enquanto ela dorme. Que, quando sai de casa, caminha por um trecho com muitas pessoas catando pequenezas no chão. Pega barcas, ônibus, vans. Passa por cartões-postais e áreas de milícia. Vê recorrentemente um homem com uma mancha roxa na cabeça sentado na sua frente, no ônibus; parte da paisagem rotineira de árvores, prédios históricos, estampidos de armas, cavalos, pinos de pó caídos. Quem trabalha conduzindo visitas tem, antes, seu próprio roteiro de visitação.
7 de fevereiro de 2024 | Jandir Jr. e viníciux da silva | publicado originalmente na revista Tilápia Azul
Notas Conversacionais sobre uma Conversa entre Jandir Jr. e viníciux da silva
Apresentação por Fred Moten e Stefano Harney (tradução de viníciux da silva)
O que significa ter e expressar solidariedade sendo um trabalhador no mundo da arte? É necessário um desvio que acaba se tornando um salto para (des)fazer essa pergunta. Adoramos a “poesia da linguagem” da autotradução, em que Jandir Jr. e viníciux, em uma conversa, se deparam com o fato de que só chegam quando já se foram, de modo que a ponte entre o blinglish e o pretuguês também é um desvio [detour] e um retorno [detournement], tudo na beira da estrada para um estudo furtivo/fugitivo [surrepetitious]. Temos outro amigo chamado Asher Gamedze. Assim como Jandir e viníciux, Asher faz esse trabalho que precisa ser feito [lays down tracks]¹. Ele estuda o Yu Chi Chan Club, um grupo de estudos/banda de guerrilha que surgiu na África do Sul no início dos anos sessenta. Quando ouvimos Jandir e viníciux conversando com Asher, assim como ele ouve Neville Alexander e Kenneth Abrahams, a ponte pan-africana se transforma em uma matriz na qual a comunicação face a face se transforma em uma comunicação de costas. Cleo Silvers, da Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários de Detroit², está nessa matriz. Ela parece refletir sobre o problema da organização racial na linha de montagem quando diz:
“Aqui estou eu ao seu lado na linha.” “Bem, eu não gosto de você!” “Por que você não gosta de mim? Temos que nos importar um com o outro!” E vocês têm que cuidar um do outro.³
Ao observarmos mais de perto suas palavras, algo perturba o apelo à solidariedade. Parece haver algo mais acontecendo, algo que é marcado por essa mudança de discurso. Nessa citação da entrevista, o discurso muda de um discurso que parece ser dirigido a um trabalhador branco para um discurso mais geral de ‘nós’ e ‘você’, em que ‘todos estão envolvidos’, como diria o poeta guianense Martin Carter.
Na mudança de discurso, Silvers parece saltar sobre qualquer resposta à sua pergunta ‘por que você não gosta de mim?’ Ao fazer isso, ela também está saltando sobre o que pode ser chamado de momento liberal no marxismo. Esse é o momento do reconhecimento individual. Nesse momento liberal, o trabalhador branco deve responder à pergunta ‘por que você não gosta de mim?’ reconhecendo que a trabalhadora negra também é uma trabalhadora e, portanto, também é uma pessoa como ele. A solidariedade se torna a base para uma humanidade comum, forjada na luta.
Mas “Why you don’t like me?” não é uma pergunta sobre um estado ou disposição afetiva ou emocional. “Why you don’t like me?” não é “Why don’t you like me?”. E se “você não gosta de mim” for um predicado que indica algo como uma condição ontológica cuja posição (a própria capacidade de) está agora em questão? Tipo: Por que você é o tipo de filho da puta que não gosta de mim? E que tipo de filho da puta é esse? Por que você tem essa condição ontológica de merda [fucked-up] que o faz agir como se tivesse uma condição ontológica? Você age como se fosse (você), filho da puta. E se a inversão de Silver dos termos “don’t” e “you” estiver ligada a várias recusas da linguagem preternatural e críticas à dependência e ao reforço da condição ontológica das gramáticas imperiais convencionais? E se a luta dos trabalhadores tiver de assumir isso, como uma questão de tradução, seja em Detroit, Durban ou Rio de Janeiro? E se esse tipo de jogo de palavras, de trabalho translinguístico, em que mexemos com os fundamentos metafísicos das línguas estabelecidas e coloniais, padronizadas e imperiais, for uma outra maneira de aceitar o imperativo de nos protegermos umas às outras? E se o “você” (e o “eu”) desaparecer ao cuidarmos umas das outras? Nesse caso, terá sido literalmente o oposto do regime de reconhecimento facial “eu/tu” do liberalismo, no cuidado e diante de cada um e de todas, daquela maneira empoeirada e historicamente angelical que pessoas negras aqui e ali estão fazendo.
Então, por que Silvers pula esse momento, o passo do reconhecimento de sua humanidade? O salto é evidente na forma como ela responde à sua própria pergunta, “por que você não gosta de mim?”, com a exclamação: “temos que nos preocupar uns com os outros!” Então, por que esse salto de uma questão de “gostar” para o imperativo de ter “que cuidar um do outro”? Talvez a pista esteja na mudança para o imperativo que acompanha a mudança de discurso. Talvez ela precise se mover dessa maneira.
A notável vida de Silvers na luta é marcada por um grande amor e comprometimento e, portanto, parece improvável que ela esteja recusando esse momento de humanidade comum do trabalhador branco por qualquer tipo de má-fé. Da mesma forma, ela não teria dúvidas de sua dignidade e valor. Então, por que ela é obrigada a ignorar essa questão?
E se, de forma coerente com a tradição negra radical da qual ela faz parte, Cleo Silvers não estiver procedendo (apenas) de uma compreensão da solidariedade dos trabalhadores em face do capitalismo? E se ela estiver procedendo a partir de uma compreensão do capitalismo racial? Na verdade, e se ela estiver procedendo — corretamente — a partir da análise essencial do capitalismo racial: que o capitalismo opera por meio da brutalidade como acumulação e não por meio da brutalidade para acumulação? E, novamente, na análise do capitalismo racial, essa brutalidade pode ser melhor resumida como o revezamento imposto de individuação e desindividuação.
Simplificando, e de uma forma que os marxistas deveriam entender, o capitalismo racial entende essa brutalidade como a força principal entre as forças de produção, não apenas como uma dinâmica estruturante das relações sociais de produção. Deve ficar claro que não se trata apenas de uma releitura do marxismo para dizer coisas tão mundanas como que a acumulação primitiva nunca terminou ou que não pode haver fim do racismo sem o fim do capitalismo. Esses são meros ajustes à mesma estrutura, como demonstram as recentes leituras equivocadas do trabalho de Cedric Robinson ou Denise Ferreira da Silva. Nessas leituras de raça + capitalismo, o capitalismo racial é entendido como a capacidade histórica do capitalismo de tirar vantagem e promover divisões de raça para explorar e governar. Ele não pode ser eliminado sem uma luta anticapitalista. Mas pode ser isolado como uma relação social de produção, mesmo que determinada. Portanto, nessa estrutura, ela é, em última análise, uma categoria sociológica, separável da acumulação capitalista, mesmo que altamente funcional a ela.
Mas (a luta contra) o capitalismo racial não será enquadrada. Não há termos de (des)ordem. Portanto, há uma razão pela qual a Liga se organizou separadamente como uma organização negra, apesar de ser declaradamente marxista-leninista. No capitalismo racial, não há caminho para a integração e, portanto, para a solidariedade da forma como os marxistas continuam a concebê-la, sem individuação, sem que cada trabalhadora negra aceite sua humanidade individual como o preço da integração. Quando a brutalidade é diretamente produtiva, não apenas em seu emprego contra as pessoas e a terra, mas ao permitir que as pessoas e a terra produzam riqueza, a integração é a imposição da individuação. Ela é a extensão e a ferramenta da segregação e da separação, utilizada em nome do capitalismo racial.
Assim, poderíamos especular que Silvers não tem outra escolha a não ser recorrer a essa invocação de cuidado e autodefesa mútua, em oposição a, por exemplo, um apelo à unidade ou ao novo homem. De fato, outra palavra que ela poderia ter usado para esse cuidado é violência. Quando cuidamos uns dos outros [watch each other’s backs], estamos forçando essas costas [backs] a saírem de seus corpos individuais. O amor dói, então vamos reformular a pergunta. O que significa ter e expressar solidariedade em um mundo artístico estruturado pelo capitalismo racial? Significa combater a brutalidade da imposição do artista e da obra de arte, que carregam os fundamentos metafísicos da solidariedade, como a supressão contínua de práticas sociais e estéticas subcomuns, antes de serem conferidas e retidas.
Stefano Harney e Fred Moten, 31 de dezembro de 2023
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[¹] Do inglês, “lay down the tracks” é uma expressão tomada emprestada da indústria musical que pode significar “construir a fundação” (para uma música, por exemplo) e até mesmo “se preparar para algo”. No francês, usa-se “poser les bases”, evidenciando o simbolismo de fazer um tipo de trabalho que se concentra em construir fundações, bases e estratégias para a produção de algo, seja uma música, seja uma insurreição anarquista.
[²] Fundada em 1969, a League of Revolutionary Black Workers in Detroit uniu vários Movimentos Sindicais Revolucionários (RUMs) diferentes que cresciam rapidamente na indústria automóvel e em outros setores industriais — indústrias nas quais os trabalhadores negros estavam concentrados em Detroit no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. A formação da Liga foi uma tentativa de formar um órgão político mais coeso, guiado pelos princípios da libertação negra e do marxismo-leninismo, a fim de ganhar poder político e articular as preocupações específicas dos trabalhadores negros através da ação política.
[³] No original: “Here I’m standing next to you on the line.” “Well I don’t like you!” “Why you don’t like me? We have to care about each other!” And you have to watch each other’s backs. A expressão “watch each other’s backs” é especialmente importante para este texto, uma vez que a sua tradução, apesar de comumente feita, como “cuidar uns dos outros” também pode ser entendida como “observar as costas uns dos outros”, de forma mais literal. Essa literalidade, presente sobretudo no verbo “to watch”, no entanto, nos é importante, pois se perguntam os autores em Tudo Incompleto (Trad. Victor Galdino e viníciux da silva, GLAC, 2023): “Há algo que não possa ser observado? Que viole a ideia de segurança e vigilância, que torne essa ideia impraticável? Que promova um curto-circuito e um transbordamento e um superaquecimento e um enfurecimento da vigilância? Essa cadeia vigilante que permite questões políticas como: quem vigia os próprios vigilantes? O poder sendo checado pelo próprio poder. Não, nosso cheque voltou. Não se tolera o que não se pode vigiar. Quem é que não aceita ser objeto de vigilância e, em vez disso, se torna invigiável? Que sempre foi, na verdade, mas não em relação ao vigiável? Que nunca esteve lá, nunca foi uma população, mas declara, violando o ser-vigiado, “pega a visão!”? Nós, essa é a resposta, esse mais + menos do que um ou outro, que somos nós. Para quem você não pode olhar? Para quem você está olhando, filho da puta? Quem é que prefere ficar cego?”
Faculdade de Letras, UFRJ — Agrofloresta Govz, ao pé das Letras (foto: viníciux da silva, 2022)
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Arquivo, recusa e protesto: uma conversa sobre crítica institucional
viníciux da silva (21.11.2023): Estou muito feliz com a nossa colaboração. Te vi, recentemente, na Bienal (SP), mas só foi possível acenar para você. Não conseguia te abraçar naquele momento, mas sei que, agora, minhas palavras te tocam. Obrigada por aceitar o convite para esta conversa. Podemos começar falando sobre colunainfinita.pdf — de onde vem este anseio, a coragem de se manter sempre à espreita, como temos o hábito de fazer, das armadilhas das instituições; de onde vem; e para onde estamos indo?
Jandir Jr. (30.11.2023): Você visitando a Bienal e eu ali, de terno, com dentes de ouro, respondendo a cada cinco minutos onde era o banheiro. Engraçado que, ainda que as pessoas que me perguntassem, ficavam perplexas, olhando pra minha boca com o cenho franzido, não diziam nada, agiam com normalidade, falavam “obrigada”, “obrigado”… Ver você foi um bálsamo, dando um acenozinho à distância; foi bom saber que compartilhava desse momento tão especial contigo, em outra chave que não a com aquelas desconhecidas.
Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. Cofre (foto: Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo, 2023)
Vamos falar sobre colunainfinita.pdf, por favor! Olha, a existência desse arquivo tem a ver com eu ser um trabalhador de museus e centros culturais, em especial de eu ter sido um trabalhador precário, desses que acumulam as funções da educação e da orientação de público, sustentando no corpo cansado os cortes de orçamento e as políticas culturais que se preocupam com equipes de mediação cultural somente na medida em que engrossam os números de público atendido, ampliando suas chances de financiamento. Eu daria como marco para colunainfinita.pdf um incômodo anterior a sua feitura, quando pedi demissão do museu em que trabalhei por cinco, seis anos. Porque quando saí dele, me vi puto que aquilo tudo que eu e tantas vivemos, entre brigas, reivindicações, incômodos, nosso trabalho, as histórias dos visitantes violentos com quem lidamos… me vi puto que aquilo tudo iria sumir! Ali, percebi não haver políticas, nas instituições de memória em que trabalhamos, que resguardem nossas próprias memórias como suas trabalhadoras. E esse é um exemplo tremendo, eu acho, da aliança escusa entre os museus e a face mais merda desse mundo.
A partir disso, fui picado pelo bichinho do arquivo. Ou melhor, nesse momento fui picado pelo bichinho do arquivo, sim, mas relacionando-o à ausência das nossas memórias documentais, de trabalhadoras de base e racializadas, sobretudo.
Fiz, primeiro, uma publicação em formato de pasta sanfonada, enorme, junto com um monte de gente incrível — e destaco a Mariana Paraizo, que pensou todo o design da caixa. Essa publicação, cujo nome é arquivo: mar, tem só dez tiragens, e a maioria dessas estão em cinco bibliotecas de instituições culturais aqui do Rio de Janeiro: Museu de Arte do Rio, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Biblioteca Nacional, Museu de Arte Moderna e Museu Histórico Nacional. A pasta carrega fichas com textos e imagens, minhas e de outras colegas, sobre o período que trabalhamos juntas, nesse regime de exploração monitor-educador; dando um tom classista pras relações tão angelicalizadas da educação em museus (blergh!, eu não educo por amor, gente!). Pronto: algo das nossas memórias estava inoculado nas instituições. Inclusive no MAR, onde trabalhamos.
Jandir Jr. arquivo: mar, 2022. Rio de Janeiro: Selo Ocasião (foto: Juliana Trajano)
Dois anos depois do insight sobre as fragilidades de nossa memória nos espaços “de memória” (risos) que nos precarizaram, iniciei o que conhecemos hoje como colunainfinita.pdf. A premissa foi mais simples: eu tinha alguns textos de outras trabalhadoras de base, reclamando de seus trabalhos em equipamentos de cultura, relatando insurgências etc. E eu queria compartilhar isso com outras pessoas. Aí pensei na Coluna Infinita (c. 1925), uma escultura pública feita por Constantin Brâncuși, toda composta de módulos iguais que vão se empilhando em direção ao céu. Pensei nesses módulos e lembrei dos arquivos em .pdf. E me veio: “E se eu criar um arquivo em .pdf, pondo esses textos, que são todos digitais, como se eles fossem módulos de uma coluna infinita, que nem a brancusiana?” Daí escrevi o nome e o texto que acompanha a primeira página deste arquivo:
Eu penso nas páginas .pdf quando lembro que Constantin Brâncuși empilhou algumas formas modulares que, de tão idênticas, poderiam ser sobrepostas à exaustão, se assim ele continuasse. Daí o título de sua obra, imagino: era chamada de coluna infinita porque poderia sê-la, hipoteticamente; não porque já fosse.
colunainfinita.pdf é um arquivo que reunirá, sem periodicidade nem prazo de término, alguns html exportados, fotografias, fotocópias, printscreens e toda a sorte de documentos digitais de trabalhadories em luta, no campo da cultura. A costura entre seus assuntos se dará por acúmulo, sobrepondo-os. E sua infinitude, dificilmente factual, ainda assim é, como na coluna brancusiana, uma possibilidade lógica. Por tudo isso não o vejo como uma revista, nem como um livro, nem como um dossiê. O chamaria de coluna, certamente — mas não como uma daquelas colunas, de jornal.
Jandir Jr. colunainfinita.pdf, 2021-, printscreen da publicação
Quero muito seguir essa conversa contigo. Já me senti tão sozinho ao enfrentar essas relações entre arquivo, luta, trabalho, recusa… Recusa, aliás, que é uma elaboração que conheci recentemente, em muito por sua atuação, amiga. Quero te ouvir porque sei, desde que começamos esta conversa, que você está às voltas com esses assuntos. Aliás, desde quando começamos essa conversa mesmo? Penso que a categoria da crítica institucional, tão posicionada no campo da arte, tão posicionada no que o norte global exporta ao sul, pode ser disputada, tem sido disputada… e que bom que estamos disputando ela! Por exemplo: já ouvi mais de uma vez que a crítica institucional não tem validade no Brasil, porque as instituições são frágeis. Oxe! Ouvia isso e só pensava nas chefias abusivas com que já tinha lidado como trabalhador de museu. Já hoje, penso em outros termos a crítica institucional. Gosto de pensar ela mais afeita aos trens lotados, às mesas de bar, a certos ambientes, dentro e fora do trabalho, em que falamos mal do trabalho em si, dos supervisores, das chefias, do capitalismo, da estrutura, do sistema… Portanto, uma crítica institucional não tão posicionada dentro da arte. Com pouca grana, precarizada, racializada. Próxima ao falar mal do trabalho, do jeito que nossos pais fizeram, que nossos avós fizeram, que nossas familiares não consanguíneas fizeram… Desde quando começamos essa conversa mesmo?
viníciux da silva (04.12.23): Andei, andei, andei… e não consegui ver todas as obras. Bem, não cheguei à Bienal demandando o impossível. Tentei te encontrar na hora do almoço, mas não conseguimos também. Poderíamos chamar isso de desencontro. Vamos refletir sobre essa palavra. Não acho que tenhamos nos desencontrado. Nos encontramos, sim, mas nos dispersamos. E por isso podemos nos encontrar novamente, essa é a dádiva da amizade. Infinita, infindável, fugitiva… vamos à coluna!
As instituições de arte são lugares terríveis e, na melhor das hipóteses, o que elas podem nos oferecer é justamente a faísca da rebeldia, da recusa ou até mesmo a picada do bichinho do arquivo, algo tão importante quanto nossos próprios corpos. Talvez nossos próprios corpos. E aí está uma das coisas que mais me pega nesse importante trabalho de coragem. Tenho refletido muito sobre a fragilidade e fungibilidade do arquivo e da crítica da/em arte contemporânea. De um lado, por ainda estarmos experienciando e construindo tudo isso, aqui e agora; por outro, não posso dizer que sinto falta de um pensamento que não se curve às instituições — ele existe, somos nós —, mas onde estamos quando nos é permitido a liberdade não simulada? E as brechas? Onde podemos chegar se quisermos continuar fazendo a vida? Ou como coloca Spivak: como “persistentemente criticar uma estrutura que alguém não pode (desejar) não habitar”?
E, então, pensamos em práticas de recusa, tão antigas quanto podemos imaginar. Elaborada a partir das práticas de fuga de pessoas negras escravizadas, pensamos a recusa como a possibilidade de criação a partir da negação. A recusa não é a oposição binária, o simples NÃO!. Recusar é fazer outramente. A recusa é uma possibilidade de uso da “negação como fonte generativa”, como sugere Tina Campt. Diferente da oposição binária, que tem seu fim no próprio ato de negação, a recusa produz uma possibilidade frente a ele. Muitas vezes, a recusa parte do reconhecimento da precariedade (da vida negra) e da afirmação de uma postura de autocuidado e redistribuição da violência, pois nos apresenta “a possibilidade de viver de outra forma”, outramente. E aí temos nos perguntado: como criar esses espaços de recusa? Pois é preciso que ela seja possível. Mas tudo sempre começa com um desejo, uma fulguração — esbarrando na impossibilidade de fazer qualquer coisa sob a logística do capitalismo racial.Não começamos aqui, o trabalho é infindável, mas nunca solitário. É nóis, sempre nóis, num é?
Jandir Jr. (06.12.23): É nóis! E é tanto, mas tanto, que quero seguir contigo a partir de um assunto que me parece inescapável ao que estamos tratando: a carta escrita pelas trabalhadoras da 35ª Bienal de São Paulo. Na verdade, acho que quero seguir falando sobre qualquer manifestação conflitiva proposta desde os de baixo. Porque certamente não estamos aqui em termos de seguir o rastro da polêmica, nos alimentando do assunto como sanguessugas do prestígio que uma Bienal pode transferir (algo que aponta minha desconfiança em como o debate sobre o caso vem sendo tomado por certas vozes), mas em como eu vejo, na emergência discursiva de nós mesmas, e em especial no caso mais recente da Bienal, algo de interesse ao que você pontua.
Jandir Jr. colunainfinita.pdf, 2021-, printscreen da publicação
É de amplo conhecimento, mas vou retomar: na edição atual da Bienal de São Paulo, uma carta é divulgada publicamente pela revista seLecT_ceLesTe, assinada por um coletivo anônimo de trabalhadoras. Das funções de orientação de público e educação, elas tecem severas críticas às condições de trabalho; o valor do Vale Refeição, a falta de acessibilidades, as escalas de trabalho extenuantes, descumprimento do decreto do nome social nº: 8727, esperas de até três horas para ir ao banheiro, intimidações… No mesmo dia, é divulgada uma nota de resposta da Fundação Bienal de São Paulo, publicada pela mesma revista. A Bienal então pontua todas as medidas que vem tomando institucionalmente, rebatendo as críticas às suas condições de acessibilidade, remuneração e medidas de equidade de gênero. E pontua algo que, do início, retorna no fim da nota. Para exemplificar, colo abaixo as últimas palavras que disseram:
Embora as acusações realizadas não tenham sido direcionadas para os departamentos adequados da maneira protocolar, e nem tenham sido endereçadas aos canais de denúncia existentes para esse fim, a Fundação se compromete a averiguá-las e adotar, se for o caso, as providências cabíveis.
Quando lemos, eu e Antonio, que fazemos as performances da Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. e compomos a 35ª Bienal, decidimos nos manifestar com um story no Instagram, às pressas, mas que desejava contrapor algo de como o jogo de defesa institucional se desenhou:
Não poderia ter outra postura que não divulgar a carta aberta des trabalhadories da edição atual da Bienal de São Paulo. Divulgo, inclusive, para somar no enfrentamento contra qualquer gesto de culpabilização contra elus que possa advir daí. O que não é raro, ainda que lastimável. Pois se há reclamações, e não importa por qual meio vieram, e se trabalhadories buscam outros meios que não os da oficialidade da instituição para se fazerem ouvides, talvez seja porque nossos problemas, isto é, os problemas da classe trabalhadora, almejem a publicidade, a vida pública.
Jandir Jr. colunainfinita.pdf, 2021-, printscreen da publicação
Manifestos de educadores, cartas abertas de equipes temporárias, críticas de arte feitas por trabalhadoras de condomínios, insurgências documentais de artistas negros, fotos de pichações… são documentos como esses que compõem a colunainfinita.pdf, e que agora conta, em suas páginas mais recentes, com a carta dos trabalhadores da 35ª e o story publicado nas contas da Amador e Jr Segurança Patrimonial Ltda. E aí, pergunto: o que essas manifestações têm em comum? Tirando nossa postagem, enunciada por artistas em uma relativa posição de prestígio, todos os outros documentos a que me refiro foram ou são recebidos com ressalvas, quando não mal recebidos. Porque são forjados em situações de conflito, rasgando os pactos tácitos de apaziguamento em que muitos se fodem para alguns gozarem das engrenagens rodando. Falar que eu e Antonio, como artistas, somos melhor recebidos me ajuda a formular o que gostaria de dizer: como aconteceu com esta Bienal, um clima de desconfiança é instaurado porque uma discursividade trabalhista toma o espaço público. E, no meio da arte, podemos comprovar num golpe de olhos: a arena pública é dos curadores, críticos, artistas, por aí vai. Daí vejo que as reclamações desses são indiferentes ao poder instituído na medida em que o que mais fazem são reordenações dos ativos financeiros. Pelo menos é o que eu acho. Porque, ao criticarmos desde essas posições, reordenamos os regimes de atenção, de criticidade, determinamos novos valores, elegemos uns e outros. E isso não impacta substancialmente na institucionalidade do mundo, somente define novos players e, com isso, outros valores morais por onde o jogo de poderes escusos precisará escorrer e manipular.
Já, quando as que estão nas posições de prejuízo falam, é a institucionalidade do mundo que está em jogo. Os alicerces que são questionados. E esse mundo reage. Balas de borracha e spray de pimenta são exemplos clássicos, mas entendo que temos exemplos dessa ofensiva sendo travada documentalmente também, pelos atos performativos das palavras que nos são alheias. Arquivo e crítica, pelo que percebo então, tem posições autorizadas e desautorizadas, e nos interessam as enunciações desautorizadas, já que dizem tanto de nós, de como a colonialidade nos destrói, acultura, de como nos aprisiona, mas principalmente de como criamos vida desde onde estamos. Por isso me parece que a dificuldade que se apresenta trata de como lidamos com nossos arquivos e falas, que em muito estão soterradas, queimadas, perdidas em espaços alagados, sendo comidas por traças, engavetadas, passíveis de serem esquecidas… mas continuam surgindo.
Há quem falaria de guerra. Sou mais pessimista. Me parece que enfrentamos o mundo da posição do iminente massacre. Mas estamos vivas. E esse é o problema: eles têm que lidar com vidas que não se submetem tão facilmente em ser os tijolos que erguem suas mansões. Um problema ético para uns, um problema de projeto aos mais vis. Mas, em ambos os casos, um problema para a persistência colonial, escravista. Um problema inerente à sua natureza. E assim seguimos.
viníciux da silva (06.12.23): Sobre a urgência da crítica de arte, eu retomo as palavras de Fred Moten: “Parte do porquê constantemente recusamos e resistimos, no geral, ao constante convite para escrever algo sobre a crise do momento presente é porque nós não sabemos o suficiente sobre essa porra ainda. Mas estamos tentando aprender. Estamos tentando pensar nisso. E sempre há espaço para aprender e pensar. E não precisa-se manifestar em forma de resposta imediata.” Então, talvez o tempo da crítica institucional seja outro, sejam outros. Porque as nossas agendas são, certamente, outras.
A carta das trabalhadoras da Bienal não me pega de surpresa, mas a resposta institucional me desaponta pela falta de comprometimento em oferecer algo que não seja “mais do mesmo”, mais do que as instituições já fazem. Sabemos. A resposta institucional me lembra, inclusive, o posicionamento da Comissão de Ensino da EAV Parque Lage após o nosso posicionamento em janeiro de 2023: “se não tomamos ciência, não é um problema nosso.” Mas isso faz parte do jogo, tenho percebido, de uma certa cumplicidade, pois assim funcionam essas empresas-máquinas. E tudo isso se repete… tudo isso está documentado na colunainfinita.pdf. Então repito a sua pergunta: o que essas manifestações têm em comum?
Bem, eu gostaria de trazer um conceito para pensarmos sobre as dinâmicas que atravessam o que estamos chamando de institucionalidade do mundo — o que acho conseguir transmitir o que quero falar aqui sobre a Bienal. Fred Moten e Stefano Harney, autores de Tudo Incompleto (GLAC, 2023) — livro que traduzi com Victor Galdino — empregam a palavra logística para descrever “a ciência do aprimoramento”. Em “Genealogias da Logística”, Harney diz que o tráfico atlântico é o nascimento da logística moderna. Então, há aí uma lógica colonial e, se tomarmos como pressuposto que esse modo de funcionamento das instituições visa justamente esse aprimoramento, essa eficácia em função de seu próprio aprimoramento, estaremos falando de logística e de instituições que surgem já coloniais. Bom, é claro que já sabemos disso, e pensar as genealogias da logística nos permite aproximar o modo de funcionamento dessas grandes instâncias do modo de funcionamento dos mercados móveis de extração de capital do século XIX. Então, o que muda?
Em um certo momento dos conflitos institucionais, eu estava tão cansada, física e espiritualmente, que comecei a pensar que continuar esse trabalho era, de fato, impossível. E continuamos. E ele permanece impossível. Então, cuidemos do nosso orí e continuemos, porque o que está em jogo, afinal, é que sabemos que todas essas nossas movimentações criam fraturas e desconfortos que podem ser observados nas reações institucionais, por mais óbvias que elas possam ser. O Parque Lage, por exemplo, reagiu restringindo ainda mais o acesso de bolsistas às aulas e as condições de permanência na escola. Não podemos dizer que as críticas não foram ouvidas. Então, o que muda agora que nosso trabalho parece não dar resultado? Mas sabemos que ele está por aí, em todo lugar.
E estou dizendo tudo isso porque quero tentar chegar em algum lugar: de onde viemos? Dessa insatisfação (sub)comum, que nos une contra a logística colonial, posição a partir da qual criamos recusa, estratégias de fuga, críticas institucionais. E aí surgem os nossos arquivos. Tanto no que coletamos nesses trajetos, quanto na beleza que atravessa as nossas vidas. Então, repetir é sempre importante. E para onde estamos indo? Talvez para a infinidade de possibilidades que se abrem a partir dessas brechas, afinal, o jogo do mercado ainda nos dá algo, concorda? As instituições, enquanto agentes de mercado, incorporam as críticas e as transformam em produto; com isso, ganhamos e perdemos. Não sei se posso dizer que a relação é de troca ou, em certa medida, uma escolha totalmente consensual. Esse é o trabalho da logística, pois incorpora a perda em sua fórmula: “porque a logística moderna não é apenas sobre como transportar grandes quantidades de mercadoria ou informação ou energia, ou até mesmo mover essa eficiência, mas também sobre a exigência sociopata pelo acesso: topográfico, jurídico, não obstante, tão importante quanto, o acesso corpóreo e social.”
Então, à luz de tudo isso, penso sobre esse (tipo de) arquivo como um efeito da recusa. Um trabalho pensado e elaborado com muito rigor, sim. Mas um fruto da rebeldia. Da rebeldia enquanto método. Nesse sentido, há um certo perigo no arquivo, sobretudo ao se tratar de um arquivo de crítica institucional, pois estamos lidando com grandes e poderosas instâncias. Por isso, eu gosto de trazer a figuração da rebeldia quando falamos de arquivo, pois me faz transitar por um mundo de beleza que a Saidiya Hartman consegue construir em torno dos arquivos da escravidão e do cinturão negro do século XX. Então, ela diz: “Rebelde: o movimento desregulado da deriva e da errância; permanências sem um destino fixo… a luta diária para viver livre… A rebeldia articula o paradoxo da criação restrita, do emaranhado e do confinamento, da fuga e do cativeiro… Atacar, se revoltar, recusar… Perder-se para o mundo… A rebeldia é uma prática de possibilidade em um tempo no qual todas as estradas, a não ser aquelas criadas pela destruição, se encontram bloqueadas.” Uma recusa, uma dança, um anseio que não nos faria hesitar em acabar com tudo.
Jandir Jr. (15.12.23): Em 2017, alguém – ou melhor, minha chefe – avisou que minha imagem foi compartilhada num grupo de mochileiros no Facebook; um vídeo, registrando eu e um colega, cantando num rádio que usávamos para monitorar o Museu de Arte do Rio. Era sexta-feira, fim do dia, quando fomos filmados sem saber. O vídeo era acompanhado por um textão:
Jandir Jr. colunainfinita.pdf, 2021-, página extraída da publicação
Paula Vileny 30 de agosto às 16:13
Talvez você só entenda o vídeo após ler o texto.
Sexta-feira, dia 25/08/2017, Museu de Artes do Rio de Janeiro.
Estava eu de férias no Rio de Janeiro onde reservei boa parte da minha programação para visita a Museus. Dentre todos que visitei, foram 6 no total, em um tive uma experiência bem desagradável.
Museus, para mim, devem ser vistos como espaço destinado à construção e disseminação do conhecimento na sociedade, local para estar em silêncio consigo e com seus pensamentos
Chegamos ao Museu às 16h, às 17h a bilheteria encerrava, mas quem já estava lá dentro podia permanecer até as 18h. 2 horas em um museu é pouquíssimo tempo, então tínhamos de aproveitar da melhor forma. Mas, um obstáculo foi encontrado e não tinha nada a ver com tempo….
Em uma determinada área, enquanto olhava a exposição e lia as informações que ali continha, funcionários que estavam nessa sala, que ao meu ver deveriam estar ali para vigiar/tirar dúvidas/fiscalizar entradas e saídas de visitantes, se divertiam ao trocar mensagens de rádio com outros colegas, onde o rádio que deveria ser usado também como mais uma ferramenta de trabalho dá espaço para um instrumento de “descontração”.
Como funcionava a brincadeira: de um lado alguém falava uma palavra e quem a recebia deveria cantar uma música com a palavra mencionada, após isso os papéis invertiam. No momento que filmei, os funcionários receberam a palavra “banana” e os mesmos começaram a cantar uma música do Chiclete com Banana.
Conversas, brincadeiras, gargalhadas, zoada e uma tremenda falta de respeito com quem, pelo menos tentava diante do barulho formado, se concentrar na exposição, nas leituras.
Olhávamos para eles, para ver se tocavam com a situação, mas estavam concentrados demais na sua atividade. Então, resolvi filmar. Nem perceberam.
Saímos e fomos para outra sala, tinha um segurança e perguntamos se existia algo ou alguém para que contássemos o que tínhamos presenciado. Mas, não tinha ninguém e acabamos descrevendo o que tinha acontecido ao segurança, e sabe o que ele nos respondeu? “Ah, são jovens”.
O que eu vi não remete a isso. Foi falta de educação, de respeito, de cuidado com o outro, falta de ética no trabalho. São jovens… também sou, também somos. Juventude não tem nada a ver.
Idade não traduz maturidade. É verdade que ninguém é responsável pelo progresso, mas ninguém lhe é indiferente e nem deixou de fazer parte dele, por isso, deveriam deixar de justificar algumas atitudes dos mais novos como se esses males fossem normais por pertencermos a uma geração diferente.
As atitudes que temos hoje é o reflexo de ontem e uma inspiração para o amanhã, podemos e devemos melhorar aquilo que se percebe que precisa ser aperfeiçoado, com a garantia de que todos ganhamos, pois, o saber não ocupa lugar.
Sem experiências não há aprendizagem e não é a idade que define tal opção, mas sim a disponibilidade de cada um, pois querer é um passo para fazer.
Se acreditarmos que sabemos o suficiente por termos uma determinada idade, acabamos imaturos, inexperientes, parados no tempo, amargos, frustrados… bananas.
Banana. BANANA. BA-NA-NA! Não é que a palavra recebida no rádio cabe totalmente a eles?!
O museu, publicamente, via Facebook, acolheu Paula. Enviou condolências, ofertou uma visita gratuita e disse que ia treinar melhor a equipe. Tudo numa mensagem escrita, inclusive, do perfil pessoal de uma funcionária da comunicação, numa proximidade estranhíssima.
Jandir Jr. colunainfinita.pdf, 2021-, página extraída da publicação
Já contra nós, administrativamente, recebemos advertências, prática recorrente quando as diretorias não gostavam de algo que fazíamos. Por exemplo, caso alguém encostasse numa obra: advertência. Caso fôssemos notados lendo livros: advertência. Cantar? Advertência. Certamente seríamos demitidos se não tivéssemos supervisores conscientes da irrelevância desses problemas, e que puderam defender, ao menos, nossos empregos. Sermos advertidos, por fim, era o mal menor, ainda que pudesse resultar em uma justa causa, no caso de reincidimos. E o que é reincidir quando se está vivo, desejando nutrir a amizade umas com as outras, entre as coisas, mesmo que sendo, de corpo inteiro, escrutinado por vontades de imobilidade e maquinização?
Contudo, mesmo pesarosos, lidando com nós mesmos e com nosso ato na chave da desobediência e insubordinação, tínhamos uma pista do abuso do que Paula fez. Porque as respostas que recebeu naquele grupo de mochileiros, na maioria, foram críticas.
“Atire a primeira pedra quem nunca, na última hora de serviço de uma sexta feira, não deu uma descontraída do trabalho.”
“Não acho que seja pra tudo isso, eles estavam brincando, se te atrapalhou poderia ter chegado neles e conversando. Imagina se o museu passa horas por dia, dias por semana ocioso, os funcionários devem ficar sérios sem ao menos se descontrair. Todos fazemos isso em nosso trabalho, e nada como eles tbm. Como disse, poderia ter conversado, e não filmado e postado na internet, acredito que seria mais eficiente.”
“Que besteira… Queimando os funcionários atoa. Parece até algo pessoal!”
“Se eu tivesse lá ia preferir entrar na brincadeira, ia chegar logo de Jorge Ben, “Olha a banana, olha o bananeiro ~” xD”
“Errado por Errado, gravar alguém sem sua permissão é certo?”
Corta a cena: um pouco depois, ainda em 2017, o museu sofreu ataques por sua vontade de abrigar a exposição Queermuseu. Não sei se você lembra dessa mostra, que inaugurou no Santander Cultural, em Porto Alegre, e foi rapidamente fechada após protestos que a acusaram de ser uma propaganda de ideologia de gênero, pedofilia, zoofilia… esses termos caros à extrema-direita. A exposição buscou, por um tempo, outro espaço para acontecer. E antes de ser reaberta no Parque Lage, houve alguma conversa para que fosse recebida, na verdade, pelo MAR. Isso não aconteceu. Mas mesmo com o prefeito da época, Marcelo Crivella, vetando qualquer possibilidade do museu sediá-la, declarando jocosamente que ela só seria aberta “no fundo do mar”, houve um ato nas galerias do museu, capitaneado por Sara Winter e meia dúzia de neofacistas. Um protesto engraçado, eu diria: ao verem uma fotografia de uma mulher de minissaia de mãos dadas com uma criança, começaram a acusar nela uma prova cabal de apologia à pedofilia, enquanto filmavam a si mesmos e aos funcionários do museu, contra quem gritavam.
Dias depois, o MAR afixou em suas paredes cópias de um aviso, informando, dentre outros tópicos, que era proibida a gravação não autorizada de seus “colaboradores”.
(foto: Jandir Jr., 2017)
Aqui gostaria de retomar sua menção à logística. Porque é importante frisar: o MAR protegeu suas funcionárias, de modo a se proteger, mas não tomou essa posição quando a filmagem não permitida foi um problema trabalhista; quando foi um problema interessante aos seus processos internos; aos seus métodos de controle e penalização; quando esteve alinhada aos valores que mantém a institucionalidade deste mundo de pé – valores sustentados pela subjugação de pessoas como nós. Ou seja, nesse episódio sobre Queermuseu, o MAR desejou proteger suas funcionárias somente na medida em que são estruturantes de seu infinito vir-a-ser, já que entendo que o ato de uma instituição é apenas o de criar-se ininterruptamente, e que nada faz muito bem para além disso. Ou seja, aprimorando-se de modo perspicaz, ora nos beneficiando, mas sempre com o objetivo-fim de fazer a manutenção de nossa desumanização – e, com isso, a manutenção da continuidade do projeto moderno-colonial, mesmo que seus atores não tenham total clareza disso.
A paz só é possível enquanto a mobilidade é possível. E a mobilidade é uma impossibilidade completa. Estamos dentro, sempre dentro. Quilombos e aldeias gozam de uma exterioridade como projetos, mas estão dentro. Aos modelos societais que persistem, a violência é institucional. Tráfico escravista, lei da vadiagem, prisões, manicômios, posse de terra, marco temporal, trabalho… Enquanto isso, desenhamos nossas táticas. Me parece que o arquivo é uma delas. Ou melhor, “alguns arquivos” têm sido. Certamente falamos em outros termos que não os da hegemonia quando usamos essa palavra.
viníciux da silva (15.12.23): 2017 e 2018 foram anos muito difíceis para as trabalhadoras da arte. Recentemente, em uma ocasião com Clarissa Diniz e Michelle Sommer, refletíamos sobre como o ano de 2018 fundamentou — ou melhor, criou as circunstâncias para — muito do que vivemos e precisamos lidar hoje, em termos de conflitos institucionais, negociações políticas e avanços do neoconservadorismo. Não que sejam coisas novas, mas que algo muda de lá para cá, sim. E foi justamente esse contexto que me formou enquanto intelectual (primeira vez que ouso usar este termo em autodefinição). Nesse sentido, eu diria que quando ousamos criar algo ou fazer algo para intervir em contextos como esses, quando nos juntamos para isso, como diria Moten, algo escapa, algo precisa escapar. Então, a violência, a coerção, as respostas institucionais, como você bem disse, tudo isso aparece como efeito da logística em prol do funcionamento da própria instituição; ela nos individualiza, para então tentar evitar nosso escape, nossa recusa. E, então, nossas linguagens: o que é uma “banana”? As palavras nos escapam como nos fazem mover nossos corpos. E repetimos a velha questão: a quem interessa interromper um corpo que se move e move e move? Gosto de usar uma palavra para descrever as relações de omissão e coerção das instituições e da academia: cumplicidade. A velha cumplicidade, um jogo perverso do desejo.
Em 2018, visitei a exposição Queermuseu no Parque Lage. Vários problemas. Por ora, compartilho das palavras de Clarissa Diniz:
À estratégia de desqualificação do queer em nome do próprio queer que é perpetrada pela plataforma curatorial concebida por Gaudêncio Fidelis ao, de um lado, indicar que não haveria uma produção queer que pudesse ser suficiente para uma exposição com “tal dimensão” e, por outro, julgar normativa, improdutiva, temática e ilustrativa a consideração e o exercício de uma lógica de representatividade na arte, devemos contrapor uma pergunta fundamental, lançada por Jota Mombaça: “ao invés de por em dúvida nossa capacidade de forjar discursos e saberes desde as subalternidades, [interrogo] a capacidade dos marcos hegemonicamente consolidados de reconhecer nossas diferenças. Pode um saber dominante escutar uma fala subalterna quando ela se manifesta?”
Então, ainda estamos aqui… e quais são as perguntas que ainda precisamos nos fazer? Recusamos todas elas. E vamos além: fazemos a travessia para ir além, não para atravessar de volta. Com isso, volto à crítica de arte para refletir sobre o trabalho Dance With Me (2018), de Élle de Bernardini. Como vocês sabem, meus interesses recentes de pesquisa têm se desdobrado a partir da produção artística de pessoas trans/travestis e negras no Brasil e no mundo no século XXI. Então, quando li pela primeira vez sobre a performance de Élle, me incomoda a repetitiva leitura de movimentos de corpos trans, sobretudo, a partir das mesmas chaves: subversão de gênero; prótese; monstruosidade. E das mesmas autoras: brancas, do Norte Global… Sobre o trabalho, a artista diz:
Corpos trans e não binários, como o meu, são lidos pela sociedade de forma abjeta, indecente e depravada. Corpos que só servem para sujeitar e prevaricar. Em Dance With Me cubro meu corpo com mel e folhas de ouro 18k, e ao som de bossa nova e mpb convido o público a dançar comigo, num gesto de aproximação e desfetichização. Brinco com o jargão “não aceito você nem coberto de ouro”, para questionar os mecanismos de aceitação e rejeição de corpos trans e não binários pela sociedade normativa. No meu trabalho, esses mecanismos são o uso da beleza e da riqueza que enfeitam meu corpo considerado objeto e o alcançam até o nível de aceitação, ou aproximação do outro, que ao final da dança leva o ouro nas mãos ou em partes de seu corpo que tocou o meu.
O que me parece estar em jogo é o caráter fugitivo da subversão que Élle parece muito bem mobilizar, mas que a crítica não consegue dar conta. Com o trabalho, eu penso que, apesar de a crítica institucional estar imbricada em sua realização, a subversão implica exceder a forma, abandonar o que se planeja subverter. A subversão é uma quebra, uma destruição, é derrubar algo que parece estar sendo levantado de volta quando a crítica (re)enquadra nossos corpos no interior da norma que queremos arruinar. O movimento do toque, da intimidade, do afeto, vai além disso — e não pode ser capturado. Por isso, cumplicidade e não ignorância é a palavra. Com Dance With Me, Élle insiste naquilo que só uma sensibilidade concentrada poderia produzir frente ao terror que ela estava enfrentando naquela instituição, sendo a beleza. Você não vê a beleza nesse trabalho? E não te parece violento esse movimento repetido vindo da crítica, das instituições (na verdade)? A liberdade não pode ser simulada⁴, do argentino Rirkrit Tiravanija, acima de Élle, onde ela dança, sozinha e com outras pessoas. Você não vê uma beleza nisso? Isso é terrível. E é lindo.
E é justamente uma tarefa nossa. Nada disso pode ser simulado, nada disso é sobre gênero; é sobre liberdade, intimidade e ingovernabilidade.
Então, eu sempre volto para uma das premissas básicas das minhas aulas. A linguagem é armadilhada, não falamos a mesma língua, pois sequer estamos no mesmo barco. A linguagem é a matéria com a qual moldamos o mundo e a nós mesmas e, por isso, é tão difícil chegar a uma compreensão absoluta de algo. Por isso, o projeto moderno não nos serve de nada. No entanto, não precisamos viver presas a esse paradoxo, embora viver à margem dele não seja uma opção. Se é através da linguagem que negociamos a existência, é também a partir de um jogo linguístico que se torna (im)possível criar novas línguas. É nesse subcomum que estamos nos movendo exatamente agora, juntas. Onde a liberdade é uma experiência efêmera que conhecemos bem — mas eles não. Estamos destinadas a sermos livres? Se isso não for possível, sejamos um mistério.
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[⁴] Exposto na Mostra Somos Muit+s na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2018, onde Élle apresentou sua performance no contexto de encerramento da mostra. No dia da performance, ele estava localizado logo acima do local da ação, integrando, também, a dança.
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Jandir Jr. é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Ao lado de Antonio Gonzaga Amador, realiza a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., série de propostas performáticas desenvolvidas em instituições de arte pelos próprios artistas trajados com uniformes de segurança. Costuma enviar correspondências para pessoas que o desconhecem.
viníciux da silva é artista, pesquisadora e tradutora. Escreve sobre, ensina e trabalha com arte e curadoria contemporâneas, pensamento negro-trans/travesti radical, epistemologias feministas negras, anarquismos transviados e cinema negro experimental.
Imprimi este texto em cupons térmicos que abandonei, preferencialmente, em espaços com caixas de pagamento: lojas, supermercados, padarias, lanchonetes…
É certo que hoje estudo e trabalho com arte. Mas já fui um trabalhador mal pago, desenhando no verso de um cupom. Eu consertava impressoras fiscais e o modo de fugir do trabalho extenuante era esse: esperar os chefes saírem e rabiscar nas próprias bobinas, imprimindo força, fazendo surgir monstros e palavras dos meus traços. Os gritos que gostaria de gritar vinham como charges de bocas enormes, vociferando entre dentes afiados. Assinava meu nome compulsivamente, me vestindo com outra carne, um corpo de tinta, grafado. Em meu trabalho não era mais que uma coisa, eu mal era uma vida, mas tinha um lápis à mão, ou uma caneta, e em traços fugidios riscava como um escape. Traços que, penso eu, se somam a outros traços, desde tempos que não conheci até há pouco, quando eu entrei numa loja e vi o caixa passar minhas compras enquanto desenhava no verso de uma nota que iria para o lixo. Como coautor, anuncio esse livro de paginas soltas, infinito. Esse museu impossível, feito por aqueles a quem foi negada a memória pública. Desenhos e textos que certos trabalhadores fazem, entre uma coisa e outra. Sobrescrevendo papéis sem brancura. Comprovantes queimados.
Rasguei ao meio uma fotografia, com o texto abaixo manuscrito em seu verso, e inseri seus pedaços em dois livros da Biblioteca da Pivô, em São Paulo, por ocasião do evento Cinco livros comentando entre si sobre outros volumes que compõem a biblioteca que os hospeda, organizado por Pedro Zylbersztajn e com participação minha, de Maíra Dietrich, Flora Leite e Paulo Pasta.
Eu sou um homem negro olhando para dois homens brancos com animais no colo. É 2011, um ano depois da minha entrada no curso de artes. Um deles, Joseph Beuys, carrega uma lebre morta em uma performance, guiando-a, sussurrando para ela sobre cada quadro em uma exposição de pinturas, e seu rosto está completamente coberto de mel e folhas de ouro. O outro é Iberê Camargo, um pintor em seu ateliê, levando Martim nos braços, seu gato. Eu resolvo juntar as duas imagens, irmãs partidas entre épocas e continentes distintos, parentes estranhas, e guardo a montagem no meu computador. 12 anos depois, imprimo a junção, escrevo este texto no verso, mas rasgo a foto ao meio. Libero as imagens, separo-as novamente. Em uma biblioteca, então, insiro a foto de Iberê entre as páginas do único livro de Joseph Beuys que encontrei. Já a imagem de Beuys ponho num livro sobre Iberê Camargo. Certamente, para este texto ser lido novamente, suas duas partes precisariam extravasar as páginas em que as contive, num reencontro. Mas é possível que as fotos permaneçam dentro dos livros, é possível que sejam roubadas, é possível que sejam mudadas de lugar por ume bibliotecárie. E nisso nunca mais se unam, e a coincidência entre Beuys e Iberê vá se perdendo, minhas palavras aqui sumindo, sumindo essa memória de 2011. Ou, talvez, uma das imagens seja vista entre as páginas do livro de seu correspondente e testemunhe uma pista, quando muito, sobre o contato improvável entre nós, e a tinta, e o gato, e a lebre, e a morte, e o mel, e o ouro.